31 de agosto de 2008

Diário 02

A casa vibra de motores obsessivamente domésticos.
Os livros adensam-se nas paredes.
A janela sopra, fria.
Chove, já não chove.
Maquio papéis com as palavras...
São versos e vícios tatuados a esferográfica,
Moto contínuo.
No dia seguinte estarão unidos,
Ecos e tinta
E mentirão descaradamente.

Diário 01

Na noite de domingo
Séculos de segundas feiras.

Dar corda aos relógios,
Todas as guerras na memória.

O dia seguinte
É pontualmente cotidiano.

A última batalha:
Ontem são só escombros.

A ilha dos teus segredos

A língua da noite é áspera e fria.
Velejo e, no hálito do vento, não ouço segredos.
Teu rosto surge na maré das mesas.
Para ninguém olhas, brilho quente de âmbar!
Ilha, teu pensar é terra mas não dizes palavra
E eu vou navio fantasma a vagar por carnes e ossos
Enquanto a noite abre sua boca de oceano
E lambe meu corpo com sua língua dura.
Procuro teus olhos, águas vivas, em vão.
Observo teus recifes por onde sonho navegar,
Desejando meu naufrágio em teus escolhos
Só para ouvir os teus segredos.
Navegar é impreciso, mesmo pelo mar de meu amor.

Paradoxo

Eu não te quero,
Eu te quero muito mais.
Porque desisto,
Porque te deixo ir,
É por não dizer assim
“Não vás ainda, amor, não vás”.

Eu te espero
E te desejo por demais.
E é por que resisto
Que só te prendo ao insistir
“Olha para mim”
Quando tão linda aqui já não estás.

29 de agosto de 2008

Só por hoje...

Só por hoje peço permissão para sofrer
Que meus olhos não se envergonhem,
Que meu coração não se envergonhe,
Que minha poesia não se envergonhe,
Pois hoje tombaram covardemente...

Amanhã é outra história.
Quando o sol nascer
Estarei de pé novamente,
Firme, resoluta, confiante e quem sabe sorridente...
Mas por hoje apenas,
Suplico por meu direito de sofrer
Somente hoje (e quem sabe pela eternidade),
Manterei distância da ditadura da alegria forçada,
Obrigatória.

Quero a verdade
A simples verdade de saber-me humana,
Pés no chão, sangue nas veias e lágrimas nos olhos
Quero a doce transparência de saber-me carne e espírito,
- Sem nenhum intervalo entre ambos -
A suave e quase nula surpresa
De descobrir-me universo,
De aceitar-me terra
E desejar-me semente.

25 de agosto de 2008

Três Marcas


Três marcas, pequenas manchas em meu olhar
e os homens jovens que falam de grandes idéias
e algumas frustrações
que tuas visões de criança deusa
atravessam como um certo quebra-gelo
entre icebergs de velhas águas.
Três marcas e a proa de teu olhar
quebrando sonhos e estátuas de falsas liberdades
e meu estômago pegando fogo
e meus ideais morrendo
na falta de surpresas que me dêem motivos
para mudar de rumo e é domingo.
Sei de todas as sementes
e de muitos sentidos
que não ouço mais nas entrevistas.
Vejo-me como um bêbado bobo,
observador de passagem,
num acampamento de desesperados
com um objetivo que já não é meu.
Teus olhos negros singram gelos em mim
que observo os três pontos,
constelação do tempo,
redemoinho em teu rosto.
Refaço caminhos sem retorno e sem trégua,
homens sinistros que não sentem nada
e homens que sentem demais
para não fazer absolutamente nada
que não seja beber intensamente
como estar diante das horas do fim.
Três marcas da mais tenra pele da inocência
a comerem a vida
enquanto ouço estrondos distantes,
a desmoronar meu coração de ossos
por querer mais do que sonhos estúpidos
e mais que estampidos mecânicos
de um vermelho domingo azul,
sem tréguas para amar.
Três manchas a delinear o fim da tarde
com teus olhos corta-gelo
de poderoso navio errante
que só parece ter um rumo
mas que não sabes qual é
e se é o teu.
Com certeza estou a errar
e minhas andanças dissolvem-se
na névoa do oceano gelado
em que sou pedra d’água,
montanha efêmera de vida e gelo,
ida na tentativa de entender
minhas ávidas paixões desertas
como tu atravessando meu mar
com três marcas no rosto
e teus negros grandes olhos.

22 de agosto de 2008

As palavras em mim

Toda minha vida em pequenos sinais.
"Caminhos pedregosos, não permaneça. Apenas passe".
Liberdade, siga o vento!
Os pneus impedem a decolagem...

Amigos momentâneos
No meio do caminho
Destino no retrovisor?
Todo ao contrário.

Da partida à chegada, o vazio.
Apenas.
Perder-se e encontrar-se
Para isso, a poesia
(A estrada de passagem)
Abraço de asfalto
Quente, palpitante.
Delírio? Miragem? Sonhos?
Não... Simplesmente palavras.

Poema de Vanessa Marques

Inútil Vigília

Espreito insone,
Em minha escuridão.
Está densa a noite...
E a solitude vem medrar das sombras
E atormentar meu silêncio.

Nessa hora morta
Sou um espectro arredio.
A alma chora desfeita
Entregue e sem retorno
Qual fantasma angustiado e vazio.

Sussurro um lamento...
Aquiete-se coração meu,
Não há outro jeito!
As asas da falena, puídas,
Desmancharam-se pelo chão!

Impossível voar depois que se cai.
Há de se recomeçar pela lagarta:
Devorar e ceder à metamorfose.
Amar é o motor e a decorrência.
Um dia secar as novas asas e ascender!

17 de agosto de 2008

Andrômeda & Perseu


Ah meu amor, que enorme dor é essa!
Com a cabeça de minha mais sombria górgona
Quero petrificar o monstro que te alcança!
Mas o crânio coberto de serpentes
Que ergo firme com meu punho esquerdo
É meu próprio medo, o mais profundo.
E o teratológico ser que das águas vem devorar-te
Em verdade emerge de tuas mais indizíveis entranhas...

12 de agosto de 2008

NOTURNO 16 O fantasma em mim

Doce espectro que me segue nas ruas desertas,
A noite avançada em meus delírios nus.
Eco dos meus sapatos no fim do caminho,
És silêncio ao me voltar a ti. Vejo-te, não te vejo.

A noite é mãe e seu colo é este gueto sujo.
Fiel como um cão, tropeças em mim nas encruzilhadas,
Arrastando teus trapos à procura dos meus.
Tento surpreender-te na próxima esquina, olho não olho.

As fábricas ressoam em distantes boatos,
O coração que se ouve do útero é o pulsar da solidão.
E eu penso como deve ser teu rosto, minha sombra,
Sinto-o triste, mas não o encontro! Estás aí, não estás...

Engendrado neste ventre urbano imagino-me só
E quase perco tua pista sutil, quase sou eu, quase não tu.
Procuro teus andrajos brancos, paro, ouço, espero...
Estás aí, meu reflexo? Dize-me, estás aí? Ou melhor não?

Silêncio diante de ti meu espelho, silêncio de mim.
Tentarei de novo na próxima esquina, vejo-te, não te vejo.
Triste meu rosto, espelho! Sinto-me, não me sinto...
Ai, meu espectro, responde: estás comigo ou sou eu só?

Ir-se...

Todos os sinais na estrada: curva perigosa, não ultrapasse,
Passe apenas, liberdade nos pneus, vento...
Acelere, paisagens momentâneas dos caminhos sob o céu.
Dirija com cuidado, use o cinto, preso ao movimento,
Destino de pára-brisa, sempre ir, pensamentos no horizonte.
Partida e lugar comum, todos os lugares todos um,
O brilho do asfalto é um espelho de líquidas miragens,
O olhar, a pista, e a viagem instantaneamente eterna...
Encontre-se pelo menos de passagem: siga.
Não se detenha entre as margens à sua volta,
Não pare. A estrada é para isso: embora sem ir, ir embora.

Entranhas de Metrópolis

Você está na área de tiro à espera de um "dia feliz".
No corredor da estação há uma passagem como uma janela.
Uma velha estátua com olhos sem pupilas fita, cega, o nada.
Há choro e riso. Há muito barulho, ondas de rádio e ranger de trens.
A faixa amarela nunca deve ser ultrapassada.
Você está na área de tiro à espera de um “dia feliz”.
Corpos amontoados ao pé da escada arrastam, suburbanos,
Amores perdidos, trens perdidos, olhares perdidos, olhos de pedra.
No fim da plataforma há uma fresta como um caminho.
As mãos de um atlas catatônico sustentam um desconcertante mundo,
Gesso, pó e cimento, diante de todos os fantasmas das gerações vagantes
Que passaram sem destino conhecido, indiferentes, no insano retrato,
O descaso da partida, o desterro da chegada.
Cuidado: porta automática. Aguarde o sinal.
Você está na área de tiro à espera de um “dia feliz”.

Ginsberg & Presley

Calado diante da tela ouro eletrônica
de um perdido computador dinossauro
vejo velho o novo que envelhece em dias,
a lama da antiga criação.
Calado diante dos cajados infames,
tapas na cara irremediáveis,
calado diante de Ginsberg ao ler Meu Amo,
o amor armado da servidão,
Fico apenas calado.
Range sutil a morte das palavras na memória vil,
bancos de dados.
Ao ouvir Presley "You were allways on my mind",
como se fosse Presley,
bancos de dados estão a confirmar se verdadeiro ou falso
como se pudessem,
deixo-me ruir incapaz de retornar,
abelha ao fim do dia, entre sóis artificiais.
Calado diante do ouro de teus cabelos
e das luzes de sódio-sol noite,
calado diante dos cartazes, dos apelos e das violações,
Calado diante dos últimos inventos,
das horas da indiferença, da meia vida,
fim de mim e do século da velocidade,
eu, cansado, desapareço inútil e silente.

5 de agosto de 2008

Mande um aviso

Alô?
Alô...
Sou eu...
Que silêncio o seu...
Branco papel...
Meu mel...
Meu fel...
Após o terceiro sinal,
Deixe sua mensagem...
Clic...
Tu… Tu… Tu...

Seixos

Dois velhos seixos,
Arredondados seixos
Imersos no leito do Nilo,
Fundo de uma velha correnteza,
Noite dos tempos.
Nem Isis incansável os encontrou.
Vida das marés,
Carne de Osíris,
Pedras da fertilidade sacra,
A água só faz acariciar eternamente.

Durma bem Cacau...

Chove...
Um guarda-chuva colorido,
As manchas de oncinha no vestido,
Derramas teu olhar caído
Sem fitar ninguém e, fim da noite, vais.

Vejo-te descer mais uma vez a rua
Absorta e indiferente, quase toda tua,
Sexo de aluguel, uma aventura,
Meu desejo de que estivesses toda nua,
A morna carícia afável que tortura.

Sigo-te a rodopiar no vento,
Por um instante, um estremecimento
Quase isento de mim em minha lama.
E, insone, busco um sonhado alento
Nos teus braços de programa.

Chove...
O olhar absorto e distraído,
Vais embora num passo decidido.
Em minha solidão dou-me enfim por vencido
E a hora vaza-me em nascentes lacrimais.