30 de dezembro de 2008

Cantiga ordinária

poema de Adriano Francisco Geraldo
Encher de cosmos o enfeite dos cabelos de outro
Sonhar é quase isso...

Quase não pensar
Isso seria o que nos é suficiente...

Quando ele ia arrastava a neblina consigo...

A desordem dos sons...
Uma cerca rangendo fecha a poesia...

Sou um poeta primitivo...

Fumo, cuidado, contra o vento
Não quero incomodar o sono
dos Marimbondos
Sobre a minha janela...

Os insetos já se acostumaram com minha ausência
São indiferentes a minha presença...

E a paisagem quando escrevo é minha...

Cubro-me quando vou dormir,
com as peles que não cacei,
com as linhas que não teci
e com os corpos que não amei...
Como hei de ter sono tranqüilo então?
Inda mais num dia de chuva!?

O destino, se é que ele existe, deve ser cheio de improvisos...

A ausência metafísica dos bancos das praças...

Um gerúndio é uma dádiva...

Em geral,
acho que durmo mal mas, ao longo do meu dia
Percebo que estou mal acordado como se
um sono ensopasse a roupa que é meu corpo...

Eu às vezes sonâmbulo
Eu ás vezes despertâmbulo.

Recado saído de uma garrafa...

poema de Adriano F. Geraldo

Homem ao mar...
Homem a amar...
Homem ao mar...
Homem a amar...

Psiqué

Há muito que não acariciava meus sonhos...
Meu coração quase silente e adormecido,
Compassava o fastidioso cotidiano desalumiado
Onde eu parecia estar bem por não me saber de ti.

Meu corpo, tanto tempo deserto e abandonado,
Refloresceu com tua visita, meu nômade estrangeiro!
É hoje tua alegre morada de lençóis amarfanhados
Em nossos gozosos embates de amor e desejo.

Minha alma inflamada despiu-se de seu entorpecimento!
Foi teu beijo, amado meu e ainda o sinto em minha boca
Descuidada em meus pensamentos onde me dou inteira,
Marca da minha entrega, prova de meu querer.

Entranha-te em mim, meu bordão, meu arqueiro,
E faça de mim teu alvo, tua cabaça, teu ninho!
Quanta água deixarei que tomes de minha fonte,
Por desvelar meu corpo e minha volúpia!

Ama-me toda, mas não me desperdices como se nada fosse,
Toma –me, leia-me, reza-me como um credo de teu prazer,
Apossa-te de mim que assim serei teu refúgio sagrado.
Ânfora e senhora, abrigarei o amor que me fez plena e tua!

O rio sem margens

Um poema de Adiano Francisco Geraldo

Onde coisas recomeçam quando o
Fluxo dos cotidianos leva tudo
Como um rio sem margens?

É triste, tudo é triste...
Porque estou triste, tudo é triste
Porque sou...
Fugir...
Mas impossível levar este corpo
Que sinto: começa a se decompor,
Num comboio que não existe!

Se sou dramático? Quem dera o fosse!
Sou fato, porque escrevo...
De resto, tudo muda...
Não sei, já tarda!
Algo que desconheço me é urgente!
Não sei, não sei...

Naufrago num rio sem margens!

Me sinto, não me compreendo.
Entendo,
Sem poder dizer uma verdade sequer.
Sou o rio sem margens!
Mas não sou!
O que vi, fui um rio sem margens!
Mas aonde? Pra que?
Não afirmo...

Quero morrer, mas não da vida.

noturno 12 - Sonambulismo Urbano

A noite recolhe seu negro véu...
Amanhece...
Os parceiros das sombras,
Pairam nos últimos bares, teimosos...
A última cerveja, o último olhar lascivo,
Um último abraço.
E eu troco copos e pensamentos,
Bebendo desencontrado
No rastro da noite.
Esqueço-me...
Depois, inevitavelmente,
Acordo troca-mundos.

Noturno 08 - Divagação de Mictório

Ergo-me.
A mesa do bar está cheia de pratos e garrafas.
A bela anca banhada em desejos efervescentes de lua
Está sentada do outro lado. A noite vibra na avenida.
Em algum lugar, presos a véus e lençóis torcidos,
Androceus e gineceus perdulários, após gordas colheitas,
Purgam ofegantes, a tiros de falos e espocar de vaginas,
O prazer entregue à dor de não resistir à úmida vontade...
E eu penso enquanto vou ao banheiro...
O purgatório oficial já não faz o menor sentido!
E muito menos o incoerente limbo do poder cristão!
Já o pecado...
Bem... Este pelo menos é original!

Síncronos

O rei olha para o bobo.
Arde o fogo e os cães dormitam aos pés do trono.
Homens encharcados de neve e aguardente
Aquecem-se entre gritos e pilhérias.

O rei está rico.
Rico e incapaz de sorrir
Nem por aqueles a guerrear e a morrer em nome de Deus.
O bobo grotesco canta e ri e o céu desaba.

Chove.
Chove no brilho dos olhos e em cada mundo
O tempo não permite esconderijos.
Não há lugar onde não grasse um tormento.

O ronco de um avião passa contra um céu cinzento e frio
Sobre latões de lixo em chamas em meio à sujeira urbana.
Postados entre poças d’água entre velhos e novos edifícios,
Mendigos aquecem as mãos sobre os fogos fétidos.

O rei dos ladrões disfarça...
Passa o papelote ao banqueiro no coreto do jardim
Enquanto insetos de metal revoam por ali
Em nome da ordem.

O rei ouve vozes...
Um poeta num quarto francês,
Um bobo entre as gargalhadas do tempo,
Deserdados da nova metrópole diante do fogo dos farrapos...

Percorrendo séculos em busca de Deus, o rei já não vê.
Um cão levanta alerta a cabeça e o olho brilha.
O olho brilha e o bobo ri...
E chove continuamente...

24 de dezembro de 2008

Sina

Eu o herdeiro de Édipo o Rei,
Confesso-me culpado pela pequenez
Diante do fado de perder as asas,
Diante do sofrimento da queda de Ícaro,
Diante da lúcida cegueira desse rei homem
Que descobriu, ser a culpa sua própria redenção.

Eu, culpado assim até a beira da morte,
Que volto ao limiar do útero da Terra Mãe todas as noites
Para me alojar numa vaga sugestão de aconchego,
Que busco me afastar a cada manhã
Mas continuo preso pelo umbigo a esse ventre,
Sou quem se abandona esquecido qual imortal à espera da morte.

Eu que vejo o decair dos deuses em suas misérias
E que por isso cego e não posso ter a paz do colo que procuro,
Descubro-me, em vão, a mão de minha própria sina
Que se cumprirá e na última noite
Tornar-me-á o feto apaziguado
No ventre da Mãe Eterna a me anular.

21 de dezembro de 2008

Abrolhos

Beijos de vento, penhasco acima,
Minha silhueta é uma sombra fria,
Olhos no mar e sonhos na noite.

Nem a luz, nem a fonte, nem o guia.
Imóvel, sou parte dos muros da torre,
Aquele que ascende a chama.

A ilha é o que sou, um ponto,
A boca do lume, o óvulo, o habitante do rochedo.
Na noite, o vôo é a metamorfose do inseto.

Sou quem ateia o fogo diante da lente e espera cego.
O que faço vem do que sou.
É pelo que não sei que faço a vigília.

16 de dezembro de 2008

Dente de Leão

Há nos campos uma flor rústica e selvagem,
Solar, resistente, pequenina e amarela
Como um minúsculo girassol!
É até fácil de encontrar. Basta desarmar a alma...

Não tem perfume. Não morre fácil,
Não precisa de cuidados.
E destaca-se nos olhos das crianças
E dos que não perdem esse jeito de ver...

Rasteira, oscila na brisa, entre ervas verdes,
Quase uma dança de mil ritmos,
Fitando o sol a gritar os nomes indizíveis de Deus...
Sem pensar sabe que é filha da luz.

Este é o enredo do poeta: perceber o acaso da flor,
Encontrá-la de repente entre seus murmúrios.
Assim é seu degredo do mundo: compreendê-lo,
Lendo encantamentos em suas entrelinhas!

8 de dezembro de 2008

Fingir

Há dias em que pouco nos resta de uma vida inteira,
E diante do homem apenas a verdade permanece.
Há tardes em que a noite ameaça com seus olhos negros de cigana.
Não há mais tempo para fingir alegrias.
Apenas a face real diante de um espelho soturno.

Tenho diluído minha cota diária de mentiras,
Em linhas instáveis e rudes.
E os olhos daqueles que as percorrem,
Nada encontram de mim,
Ou daquilo que um dia eu seria,
Se de fato existisse...

Tufões arrebatam os pequenos seres cá embaixo
E a poeira tinge de passado,
Toda uma existência.

5 de dezembro de 2008

Mesmo penso, existo...

Quero um orgasmo,
Antigo, buscado e universal.
Quero descobrir a massa absoluta,
O impensável céu que o homem vê.
“Vê, logo existe”.
Postulado, óbvio e simples,
Cravado em mim como um começo,
Vivo e enlouqueço a beira de um abismo.
A eternidade num instante,
Um milésimo de segundo para explodir...
Antes assim, ser um clarão de super-novas,
Todos os amores cravados na pele,
Do que absurdo e vago como crer
Que em se pensar a gente logo existe!