28 de dezembro de 2009

Meu velho fantasma

Lembro-me de ti, sem dizer uma palavra,
Olhos baços, furtiva sombra
A pairar notívaga...

Lembro-me de auscultar o eco dos passos
Madrugada fria afora,
Rua deserta, esquinas de mim e de ti.

Quem era eu e que sou agora?

Em noites de mim desgarrado,
Tu vinhas por oceanos de solidão escura
E sorrias triste...

Eras como roupa estendida branca
Num varal de miragens
A tremeluzir sobre a areia...

Por favor, lembra de mim...

Então, às vezes, recordo fragmentos,
Festas de jardins sem muros, fluidos sonhos,
Espectros de minhas idades.


Uma vez, noite de inverno sem rumo,
Perambulando como um bobo que um cão perturba,
Vi num relance teus imensos panos pelos muros.

Eras-me conhecido e desconhecido...

Mas isso não importava, bastavas-me assim
Através da bruma, por sobre as sombras minhas,
Espectro indelével, meu espelho no asfalto molhado.

Um brilho de lua num telhado, um sopro repentino,
Ou mesmo uma gema d’água em meio a uma chuva fina,
A escorrer-me pelos olhos e pela alma.

Por favor, não te esqueças...

Também peço, meu fantasma.
Quando for eu o espectro e tu o que sou,
Quando vier a sorrir triste em tuas noites,

Quando, solidão dos vivos, surgir de viés em teu caminho
Não me deixes a ondear meus trapos sem ti.
Reconhece-me, mesmo sem me conheceres.

Eu em ti, meu fantasma, tu e mim!

Quem era eu e que sou agora?
Por favor, lembra de mim...
Eras-me conhecido e desconhecido...

Por favor, não te esqueças...

15 de dezembro de 2009

História quase extraordinária

Há muitos anos, eras atrás,
Tempo perdido que se desfaz,
Na quente poeira do deserto,
Algur, alhures, lugar incerto,
Um magnífico e sagaz sultão,
Orgulho guerreiro de leão,
Montava um lindo corcel escuro
A guiar implacável e duro,
Uma tribo feroz e invencível
Crua força dita indestrutível.

Sua sombra na areia era imponente!

Hoje há lá, somente areia quente...

22 de outubro de 2009

noturno 21 - Primavera em sAMpA

Gente
No metrô
Corpos pastas mochilas guarda-chuvas
Ar viciado

Chove na cidade
Lá fora na cidade
Cento e cinquenta quilômetros de congestionamento
A faixa amarela não deve ser ultrapassada
Sem lugar para o café
Cuidado porta automática
Vida automática
Espera

E as flores - não há flores
Trem estacionado na plataforma
Destino viciado
Privacidade - sem privacidade
Mergulhado na rua agora
Reflexos de néon sobre os transeuntes

Um café, por favor – ficha no caixa
Em meia hora estou chegando
Primavera e estou chegando
Sem flores - não há flores
Anoitece
Toca o celular tocam-se celulares
Palavras & mensagens & chuva
Cento e cinqüenta passos de descomedimento
A luz amarela cintila nas gotas dágua

Seu café
Privacidade
Priva-me a cidade de mim
Ato torto Vida torta
É primavera em Sampa
Rampa do viaduto
Toca o celular
Nada de flores - não há flores

Escuto
Nos boatos da cidade
Meu silêncio noturno
Minha primavera sem dentro
sem cores – sem flores - sem mim.

15 de outubro de 2009

Corpo de palha



Nas veias escuras da noite que me toma,
Jaz meu corpo como um velho espantalho,
Abandono, desapego, desenredo,
Dissonância.

A ave noturna voa,
Um vôo enganado pelos meus frangalhos,
Pelo meu “rosto sem rosto”,
Pelo céu.

Na fria madrugada,
Espreito imóvel.

A noite assombra o farfalhar das plantas.
Encontro-me estrangeiro sem biografia por dentro.
Sou quase nada, mãos de palha, estaca,
Distância.

Mas no bojo do mundo,
Braços abertos do espantalho,
Sou soprado no escuro corpo das horas erradias.
E então flutuo.

Esgueiro-me pela pele dos amantes,
Entre as coxas abertas e entregues,
Por rostos de mil faces,
Pelo céu de tua boca...

Nas asas da noite,
Daqui de meu canto de espantos,

Desfaço-me em insignificâncias no ar.

Eu & tu



Eu e tu somos eremita & estrada.
É teu corpo o meu percurso,
Todos os recantos de tua pele...
Tens meu desejo largo esboçado em ti.
Teus olhos negros e fundos,
São o esconderijo de meu ser cansado,
O santuário noturno e amável que me acolhe.
E entre tuas coxas de deusa,
Fenda intumescida a medrar tua volúpia,
Vou mergulhar inteiro.
Tua alma encontra a minha.
E minha lanterna ilumina meu lugar em ti.

13 de outubro de 2009

Amor Virtual



O sapo quer um beijo da princesa.
Ela, ficar na beira da lagoa.
Ele vê nela a perdida nobreza,
Ela bem sabe como nele ecoa.

O “bufo” quer estar com sua beleza,
E ela manter-se ali sentada à toa!
Ouve o batráquio com delicadeza
E ele conta que perdeu sua coroa.

E assim ficam os dois nessa indestreza
De entenderem de fato o quanto doa
A sina incônscia que nos dois destoa:

Encontrarem-se apenas na frieza
De serem somente sapo & princesa,
Caso virtual de amor de lagoa!

10 de outubro de 2009

A recepcionista


Vim medir teu corpo com os olhos,
Teus pés brincando pelo chão,
Na porta que cuidas entre as senhas da noite.

Perdido entre cortesãos e dançarinas, copos e cigarros,
O gato lascivo de Alice que aos poucos se revelou,
Observo-te nos reflexos dos vidros de tua floresta urbana.

Anfitriã gentil, andas amável pelo corredor desta esquina,
Ave de rapina, quente e bela, olhar de turmalina
Onde me abandono a procurar os olhos meus.

13 de setembro de 2009

Noturno 20 - Amanhã


Não!
Agora não...
Amanhã talvez frente à árvore
que de madrugada balouçou escura na aragem
a farfalhar,
gritarei meu tormento...
Estrelas veladas,
lua
entre galhos...
Amanhã não estarei por perto
que a hora erradia há de me fazer estragos.
Eu somente, na alterada cor dos sonhos,
pedinte em meu advir.
Não!
Não me chamem...
Quem sabe,
qualquer outra vez,
como quando era uma vez de entrelinhas indizíveis
e eu ficava a sorrir
sem entender!
Agora,
não mais!

4 de setembro de 2009

Noturno19 - Inconsistências



As marcas dos pneus ficam no asfalto molhado.
Eu indo, eu noite, eu entrevado
A seguir um estranho fado que não quero...
Solidão de amigos mortos,
Dois seres perdidos,
Um encontro que espero
Improvável.

De manhã, insone, abro a janela,
“Estar juntos é estar na pele”,
Mas não há toque que se revele,
Não há acalanto que embale meu coração
Que em vão apela por serenar.

Cintila o chão noturno
Como um espelho iridescente
Num mundo oposto ao meu.
Enquanto o véu soturno encobre minha estrada,
“Amar mesmo que seja imprecisamente”,
Na madrugada entre todas as perguntas tolas,
Persigo um elo entre mim e os outros eus.

Dirijo quase como um fantasma
E as imagens se diluem na água à toa da chuva.
Corriqueiros desencontros, instantes derradeiros...
Tudo em mim desconhece paradeiro
E a morte ecoa certa em meu viver.

Gênese 4.0

poema de Adriano Francisco Geraldo

para Carol
Navegue aqui comigo
Adormecido corpo na vitória-régia.
Sobre as águas de meu umbigo
Estrelas consteladas guiam na tragédia!

Eterno parto onde esqueceram
De ceifar o sanguíneo cordão,
DoisUm amanheceram
corpo-pântano em coração!

Mundo adâmico em bocejos!
Descoberta tátil do novo,
Enciclopédias selvagens de beijos
Arrancadas do alquímico ovo!

Onde páginas de parreiras
Não cobrem vergonha alguma.
Não existem tristezas verdadeiras
Nem pálida mentira nenhuma!

O Anfitrião não nos mandará embora
Do quintal vedado pelo grande portão.
No original da macieira brota a amora,
Pecado é negar nosso duplo coração!

E se acaso cansar do divino paraíso
Combinado fica um pequeno sinal.
Flor no cabelo, zape ou sorriso
E correremos nus para além do matagal!

Planejaremos assim nossos novos feitos:
Desenhos em cavernas, escritas e roda.
Arquitetando para a vida outros novos jeitos
A beira da praia onde soltaremos a corda!

E no futuro lunar de amor ungido
Outra gigantesca flor brota,
Do casamento do já unido
Uma embarcação para uma nova rota!

26 de agosto de 2009

O enigma dos amantes




Noturnas migrações, os nódulos de minha mão nômade
Alcançam teu ventre nu.
A palma em concha, detenho em teu pequeno monte feminino,
E escrevo com meus pousados dedos de poeta,
Delicadezas no papel-carne de teus grandes lábios.

Intumescências de fonte a medrar quente e lúbrica...
Por tuas trêmulas cochas entreabertas, teu querer de fêmea
Aflora com minha língua em leque em tua terna gruta.
Toma-me inteiro a hora em que beijo a vermelhidão de tua urna
E bebo sôfrego desse cálice derramado de prazer.
Sou teu arado, minha doce amante, vulva roçada em cio!
Agarro-te pelas suadas ancas diante de teu olhar pedinte,
Teus dedos crispados em meus cabelos,
Teu gosto, teu cheiro, teu calor, teu grito...
“Devora-me-te” que te decifro sem saber mais quem sou.

25 de agosto de 2009

Argonautas



Neste dia infindável em que meu barco navega lento em calmaria
E distraídos ficamos a fitar a monotonia do horizonte,
Conta-me um caso, um fato que remonte a um tempo diferente
Que dê motivo ao meu viver inconsistente à espera de tragédias.
Enquanto no morno mar sedoso, jaz o galeão em rédeas d’água entorpecido,
Conta-me como num remoto tempo ido viveram aqueles que venceram deuses...

Era uma vez... Era eu uma vez...

Ah quão mais sentido faz suster firme o leme em meio à tempestade
Que empurra a nau à deriva e agarrados a ele com temeridade não cedemos...
Dispara o coração! Homens, velas e remos, apenas um propósito: manter o rumo!
Ultrapassamo-nos. Fixamos como nosso prumo o ir para além de nós
E, pasmos de alma gritante, pagamos o preço de estarmos sós na descoberta:
A rota é o que importa, não a chegada! A busca incerta a navegar por ser preciso!

12 de agosto de 2009

As mãos sujas do poeta




I
Em minha saliva
O sabor agre e amargo
De Alexandria em chamas
É pura memória...
Falso!
Eu nunca estive em Alexandria
Ela é que está em mim
E eu ardo em febre!

II
Sob a luz vermelha das labaredas
Meu rosto em lágrimas vê,
Passado em páginas de papel couchê,
A pobreza de Roma incender-se de casa em casa...
Mas não há mais que uma agenda e uma caneta
Em minhas mãos,
Não há mortos
Apenas minha alma que se abrasa insana!

III
O fogo faz ruir duas torres em NY...
Tragédia na televisão, choque dos aviões,
Terror & gozo.
Meu olhar atônito é como sonho em carne viva!
Meus braços estão mergulhados em sangue inocente
Por todos os séculos... Mas,
O amor está numa secretária eletrônica
Para o mundo todo ouvir
"quero que saibas: te amo, te amo"
Eu alma, eu testemunha, eu escriba ouço...

IV
Cairá Paris também em fogo num incerto futuro.
Muros a derrocar por meus ossos mortos.
Um pensamento invade-me:
O que estará devastado será o que sou hoje
A afogar em meu poente lacrimal!
Renascerei das cinzas? Quem sabe...

10 de agosto de 2009

Caixa de Música

poema de Adriano Francisco Geraldo


Mar português de lágrimas caboclas
Abrasileiradas línguas náufragas
Como uma manhã num escorregador
Dum parco e pascoso parque de lembranças musicais.
Caixa chinesa que sonora explica o plano e o verniz
Lado de dentro das coisas.
Uma bailarina de plástico dança...

5 de agosto de 2009

Bordadeira

poema de Adriano Francisco Geraldo


Bordadeira da carne,
Passados os pelos do meu corpo
Pela cabeça de alfinete da alma tua,
Costurei teu silêncio mal feito...
Para rasgar de dor não te castraria
Nem te pouparia de tal beleza!

28 de julho de 2009

Os amantes


Amor vivido entre
Dois corpos.

O tato da paixão que evoca

A outra face,
O lado oculto.

Beleza e mistério: o óbvio.

A parte que me cabe
A parte que não cabe,

O abraço nu a suster o momento.

Dois quereres,
Entrega das almas,

O gozo na pele que a pele provoca.

Prova-me, amor!
Prova de amor. Agora...

Agora é sempre!

23 de julho de 2009

Entre Mundos


Que pensa você, Anjo?
Que sente?
Nada:
Você,
O Amor pela Criação,
O Amor absoluto e incondicional,
O braço do Um,
O primeiro ato,
O Entremeio de ser e nada...

Você é tudo isso. Você É, não sente...
É a Palavra, mas não o coração!

Arcanjos, Serafins, Querubins, todos não tem paixão.
São a Anunciação, a Justiça, o Velar Eterno...
Aqueles que, debruçados sobre qualquer coisa viva, dizem
“Cresce, Cresce”...

São os portadores do êxtase e do retorno.

Eu, anjo caído, este de asas escuras e com alma,
Contaminado por acontecer na carne,
Desfigurei-me em sentir...

Aquele que cai
Não é mais anjo.
Vive o arrebatamento!
Ele não é mais Aquele que o traz!
Sente-o, entrega-se humanamente a ele.
Seu amor é Amor & Ódio,
Dor & Raiva, Desejo & Sina,
Esse que nasce é
Tentativa & Erro,
Vida & Morte!
Medo!

E por pena será a velha dicotomia:
Alma & Espírito.
Ser & não Ser, Coração & Mente,
Instinto & Pensamento.

Eu “desejei”, Anjo!
Ah, eu vim para “Ser Carne”,
Ter sentidos, Pathos!
O anjo caído é isso: Vontade.
A mais pura, simples e dolorosa Vontade.

Você anuncia
Eu só posso ter presságios...
Você vinga,
Eu peco.
Você é acima do bem e do mal
Eu...
Eu faço o bem
E o mal.
A Escolha, a difícil e adorável arte da Escolha!

Irmãos entre mundos a acontecer, eu e você...
Assim é e assim seja.

8 de julho de 2009

Adormecida

Esquecida,
À espera de um beijo estrangeiro,
Fico à beira da porta de meu inferno
Ausente entre os homens e os monstros...
Sou uma estátua de deusa inerte,
Um grito travado no mármore...

Os olhos cegos que escondem minha presença
E um leve e plácido sorriso imóvel
Inibem a alma prisioneira
A escalar o abismo entre mundos!

Ninguém virá trazer aquele beijo redentor!


Nas vielas ruidosas os transeuntes cotidianos

Parecem inalcançáveis de tão próximos...
E há os que ainda acreditam em lendas,
Mas não sabem como é minha fábula.

Quem sabe por quantos séculos

Estive à margem do amor merecido!
Tudo por uma ferida feminina a sangrar,
Cálice continente e negado
Em nome do poder da espada!

Ah amável dor de ser mulher...

3 de julho de 2009

A cidade dos deuses

Pompéia cravada nos Andes.
Oposta à morte enterrada,
Airada nas alturas, nata loucura
Nos sagrados sonhos tribais,
O horizonte de pedra bruta,
Rochedo do abismo,
Corpo de mulher-montanha,
Montanha Mágica...

Ai, quantos lados tem o porvir?
Mãos rupestres rasgaram em beijos
Todas as páginas que li.
Flores multicores de cristais,
Antigos muros saltados de um outro tempo...
Eu era a caverna, a gruta crua
De que escorria uma língua só tua,
Era a lua e a carne nua que escrevia amor
Nas escadas de tua porta.
Quantos acasos, quantos cheiros na relva do mundo...

O passado é silêncio e o futuro não vejo
E a aldeia abandonada aos deuses
Paira entre plantas rasteiras e folhas de coca.
Soprados templos na brisa divina
Flutuam na altura dos picos da cordilheira.
A verdade faz ninho no que sou,
Musgo das velhas paredes.
O espaço aos pés descalços desenha um poço.
Náufrago do tempo no umbigo da Terra,
Eu estarei aqui em forma de pó.

Propósitos


Quando a última fêmea de andrajos brancos,
Inexorável e assustadora, vier por mim também,
Quero recebê-la quase que desarmado, quase que feliz...

Quero então ter cumprido com todas as palavras ditas ou não.
Quero ter dançado as músicas de minhas mais amáveis fantasias,
Quero ter feito poesia como se sempre fosse a última vez...

Quero ter sido inteiro e em tudo, mas com o olhar das crianças,
Sempre pronto a sorrir e a deslumbrar-se, sempre a rir de mim e a brincar.
Quero ter amado mesmo quando pareceu improvável conseguir que assim fosse.

Quero ter ferido pouco quem amei, e cuidado dos que de mim precisaram.
Quero ter deixado meus sonhos nos olhos, nos corações e almas que encontrei,
Quero ir sem dó, sem arrependimentos, com todas as cicatrizes como troféus,

Sem pena, sem piedade, com todas as dores do viver e contudo,
Perguntar a essa terna guia se ainda me daria tempo para mais umazinha!
Mais um amigo, mais um carinho, mais uma amante, mais uma poesia,

Mais um beijo na boca, enorme e de língua,
Mais um quererzinho para não ter que querer mais nada,
Nada, nada mais...

10 de junho de 2009

A hora do amor

Estranho amor esse
Que mal cabe em mim!
Que transborda
Minando de minhas veias sujas
Num sangue grosso-ferrugem,
Indistinto, meio sombra,
Meio brilho-útero,
Borrado no cetim...

Amor cativo,
Acuado em minhas coxas
Úmidas & enlaçadas
À ferocidade gentil
Da força bruta que me toma.
Tem ele essência de torvelinho
Antes do vendaval
A varrer meu corpo nu e surrado,
De uma batalha onde meu desejo
É ser vencida total
E desmesuradamente...

Um amor de mulher
Sedenta dos descuidos
De viver sua própria tempestade
O eixo da carne
À beira do insuportável
A cravar meu colo
De predadora nos lençóis
Libertando-me do tempo interminável
No instante eterno em que me dissolvo!

Ai, estranho amor,
Não se deve dizer seu nome a esmo,
Amor quase impronunciável,
O lado sagrado da paixão à flor da pele...
Em vez disso o que faço é só gritar
“Eu te amo”
Enquanto meu sangue
Tinge meu corpo de vida
E minhas lágrimas
Lavam minha sofrida alma de prazer!

9 de junho de 2009

A metamorfose dos anjos


Sonho...
Encontro-me sempre a pairar ansioso
Acima dos vales aráveis de teu corpo,
O avesso vôo de estar contigo,
A fingir teimoso um ar ousado de inocência...
Ensaio o gesto, vã inconsistência,
De quase tocar tua pele morena,
Desencontrado em arrepios a te querer.
Asas abertas, noturnas asas,
Sopro meu hálito em rajadas rasas
De um quente desejo,
O beijo que não alcança
Teu proibido ventre nu.
Eu sobrevoando em círculos
Sem descanso,
Sem pouso,
Sem fim,
Em ti.

27 de maio de 2009

Olha!


Olha-me. Tremo silente por vida
Eu lagarta, eu borboleta, eu fêmea,
Filha escondida de acontecer, triste,
A procurar por ti, janelas escuras
Para o incompreensível a mim...
Ai de ti, ai de nós...
Vestida de trapos, vontade de terra,
Carne de meu corpo a buscar quem sou!

És tu, terno homem que me olhas sem entender,
Amante exógeno, és tu que quero ter
Em minhas cansadas ancas,
És tu que não dizes palavra que amo,
Tu que beijaste minha boca pedinte
Tu que araste minha vulva com saliva e sêmen!
Comunga comigo este ardor
Como se soubesses quem realmente sou...

A Alma tenho com outras vestes,
Véus, pulseiras, adornos,
As pálpebras desenhadas com tinta
Onde lês “Vem, vem”.
Olha-me nos olhos: sou fábula, sou lenda,
Outra face de mulher.
Olha-me, por favor, e bem dentro
Em meu solitário fundo,
Que és tu que amo,
Tu
Que me beijas sem quereres ver.

15 de maio de 2009

Mnemon



No escuro cobre do quarto
Tua boca tem gosto de volúpia faminta...
Entre as luzes difusas da janela molhada,
Teus olhos cintilam tristes
E é deles que ganho o labirinto do tempo.

Há névoa em meu olhar-mar, velhas pupilas,
Mas o barco da procura singra em meu ser gelado
Invocando tua imagem frágil na tempestade...
Teu corpo despido e entregue é avassalador,
Tal qual era assustadora a certeza em teu fremir!

E eu, velho fauno a ver-te na névoa, soçobro
Ante o inconcebível desejo de me tatuar de ti.
Busco-te no passado assim, arrebatamento devassado,
Carícia-ilha de mulher num horizonte difuso e perdido.

No escuro cobre deste quarto deserto,
Amarga está a minha boca de palavras e tinta...
Na luz parca da madrugada nua,
Meus olhos enfim apagam-se em águas-lágrimas!

28 de abril de 2009

Noturno 17 - Outono urbano



Escura noite riscada de luzes,
A lua já não está lá,
A rua já não tem ninguém lá
Os fios tensos estão vazios
O andarilho fugidio já lá não passa...
O céu sem brilho, denso de nuvens e fumaça,
Véu disforme e penso, empoçado de baixios,
Cobre-me.
Luzes lisas, frisos dos lumes artificiais,
Boatos e sons fractais,
Frio da cor de betume...
E eu insone e quase imune
Espreito.
Na lua cheia ida,
O verme já não passeia mais!
Fecho a janela da aberta ferida
E desmancho-me:
Mesmo eu já não encontro meus sinais...

Psiqué II
















Meu corpo está deserto.
Desço ao meu inferno e destroço-me a buscar meu segredo
E em meu degredo fico vagando incerta
A esperar que venhas resgatar tua mulher.
Meu nômade estrangeiro,
Hoje tua alegre visita me salvaria do jugo de minhas entranhas.
Minha alma geme triste e prisioneira
E a sujeira sob as unhas de um deus amável é só o que vela por mim.
Nua, desencontrada e esquecida qual mariposa evanescente, arrefeço...
Mas se teu beijo eu tivesse, amado meu,
Se ainda pudesse senti-lo em minha boca,
Ascenderia em vida aos trigais abandonados de minha seara.
Dar-me-ia toda ao teu arado, feliz por me quereres.
Desentranhada de minha descida, revelada de minha sombra,
Abrolharia apossada de mim, armada de mim, senhora!
Ah vem ter comigo, meu homem terno. Toma-me toda
E ama-me que essa é minha remição, aquilo que me faz inteira e tua!

Interditos

Chove.
Tudo é névoa,
Força d’água, coito acabado e úmido.
Chove num outono a afastar minhas respostas.
E tudo está prestes a dormir, morrer, deixar de ser...
Caio, água-sêmen, fruta da minha carne,
Vida & morte.
Tomo o chão, descaso, encharco-me,
Coagular-se & dissolver-se.

Quem sou, saudade?
Quem?
A viver da melancolia de perdidas lembranças,
Tudo é tão irreal, tão incrível...
Não consigo amealhar pensamento
E sou absorvido por todas as mínimas frestas
A desvanecer...
Alma cansada, cedo à hora morta
Triste e sem saber aceitar!

Que virá depois do derradeiro céu?
Quem serei quando a tênue linha
A separar meu ser de mim se desfizer?
Não sou quem fui, não serei quem sou...
E, percebo, o país das maravilhas não existe
Nem mesmo atrás dos espelhos.
Abre-se o negro céu, estia...
A alma recosta-se diante do abrolho
E a estrela polar brilha estática sobre o nada...

13 de abril de 2009

Noturno 14 - revoada


Madrugada fria, asfalto molhado.
Acima da luz de néon,
Casa noturna, asas soturnas...
À noite, às vezes,
Os Ícaros perdidos
Vêm, amáveis vampiros,
Rondar na escuridão
Com saudade do sol
E lágrimas de água & sal
Em seus imensos tristes olhos!

11 de abril de 2009

Morfeu



Nos braços de Morfeu,
O filho escolhido de Hipnos,
Mergulho em sonhos confusos...
Onde verdade e mentira se misturam
Rostos, Vozes, Imagens, Palavras.

Mas ainda estou desperta,
E nem os mil rebentos do senhor do sono
Me vencem na vigília.
Como explicar a confusão que ainda me cerca?

Terá Morfeu
Vencido a barreira entre os dois mundos
E vindo sentar-se ao meu lado
Fecundando também a realidade
Com suas ilusões e delírios?

6 de abril de 2009

E se for verdade?



E se for verdade?
E se a cabeleira de Andrômeda vem mesmo ao nosso encontro?

Imagino-me com meu amor e seus fios entre os dedos
Um instante antes de morrer.

E se assim for?
Hoje não parece provável; estou mais doente que só.

É noite e dou-me o direito de delirar
E minha febre é esse instante antes de dormir.

E se for desse jeito?
O sorriso de Andrômeda em mim e eu em seus cabelos esvoaçantes?

Acabar entre esses fios da imaginação
E amar, antes de tudo o mais, amar.

Andarilho


Com l’anima in pena ti leggo,
O vecchia poesia dun dolce spetro che m’invita...
Andiamo avanti! In breve sarò un ombra anch’io!




A arte é um poço de desejos e angústias.
Movo os olhos de quereres e nada vejo!
Andarilho entre as obras dos homens,
Serei órfão de um barco de descobrimentos,
Solitário numa praia de fantasmas.
Seis horas da manhã...
Penso em desistir,
Mas no calor tropical de Capricórnio
Andarilho, não descanso.
Não encontrei minha última epifania,
Somente angústias e presságios.
E a morte é uma fêmea de longos cabelos pretos
E olhos fundos a me fitar.

Balalão

Bom, muito bom e demente,
Motor do querer da gente,
O amor é uma pesada leveza
Em todo vidente coração.

Espelho partido



Tu que me criticaste por eu não corresponder
À primeira imagem que de mim tiveste,
Mal sabes que era esse meu maior presente:
O que de mim consente acrescentar a ti mais do que viste,
A novidade que criaste do que eu seja.
Vê: a culpa de não me teres mágico assim,
Esse brilho apaixonado que me deste,
Não é minha. Nunca fingi o que não sou.
Se a velha escultura de teu engano desmoronou,
Foram teus olhos que viraram a página.
Eu não menti no que prendeste em tuas retinas.
Vai e segue teu próprio brilho enfim.

30 de março de 2009

Poemeu meio pós-moderno...



Urra o sapo rei:
Meu pai foi boi?

Sei, não foi
Foi? não sei...

Grita a perereca
Do mundo de fundo da mata espessa:
Seu pai foi sapo!
Nada de mais,
O resto é papo...
Esqueça!

E a saparia na cantoria embotada:
Sei, não sei, sei não sei..
Só sei que não sou nada!

ôi, não vi, ou foi, meu rei...
Sei, não sei, foi, não foi
Sei lá que ouvi...
Águas passadas...

Beija-flores



Essa MULHER gosta de voar.
Mas não é com asas, pois não as tem.
Como dádiva, ou por mágica, não sei bem,
Talvez por amor à vida, ou porque vive da fé
E por um anjo é protegida,
Possui sandálias nos pés
Revestidas de amáveis beija-flores.
Eles a levam pelo ar e ela lhes dá seu mel
E assim trazida, vai num sonho de cordel
Vencer o céu e suas dores com desejos de donzela,
Um doce néctar a medrar de seus amores,
A descer por suas pernas belas
Aonde vem os colibris tão beijadores
Fartarem-se do gozo dela...
Eu a vi, eu a amei.
Eu a protegi e ainda a protegerei
Em seu alçado vôo de buscas
A vencer mágoas e dores
E a entender quem ela é!

Meu Rio Doce

Vem ter comigo minha fábula,
Entrega-te nua, tua alma-sopro de menina
A atiçar meu desejo e tua sina.
Escreve teu nome com o fogo de teu sexo em minha rasa tábula!
Vem meu sonho velado gritar por mim, por meus braços
Em tuas movidas ancas cravadas de vontade de meus olhos baços.

Desarma-te e entrega-te a mim que te amo inteira
Pois teu doce rio a escorrer por tuas pernas de amorosa fonte,
Há de me saciar de ti quando eu beber aos pés de teu sagrado monte.
Vem, filha da deusa da espuma, vem carne sagrada e verdadeira,
A marca desse represado êxtase a agitar meu pensamento.
Tua alma consente e meu coração está a te chamar no vento...

Em cada noite

Em cada noite que te amei
Estava também a dor de te perder
Sempre sussurrada pelo fauno de pedra do nosso jardim.
Gravou-a em lápide sustentada a seus pés
Para bem me lembrar
Não por mal, apenas por lucidez.
Ele ecoava em mim essa dor
A rememorar e a murmurar, murmurar
Até o dia de tua partida, quando então se calou,
Mudo agora a dividir a perda que restou comigo...

poema de Antônio Fernando Stanziani

Noturno

A lua está de corpo inteiro, nua e alta...
Derramada em todas as paragens,
Tinge tudo de prata.

É noite de verão! Toda a gente e os insetos
Copulam em estranhas revoadas!
Cio quente na amálgama da madrugada,
Entrelaçam-se e entregam-se
Em todo ponto de lume, nas casas e nos guetos,
Nas camas desarrumadas e nos tetos
A perpetuar, nas atiradas gotas de prazer,
A vida por continuar.

Notívago sou nesta cidade,
Miríade de passantes e penares...
Dispersa na diáfana luz sobre as calçadas,
A poesia resiste nua no compasso da lua.
Vivo de ver, a vista desarmada
Na hora morta pelas ermas encruzilhadas.

Procuro um rosto em minhas sombras
E minhas negras asas pairam silentes.
É nada mais que um vulto, devaneio,
Mas teimo em perscrutar em meu planar solitário
Mergulhado no hálito morno dos becos da escuridão,
Daimon soturno e esquecido que não dorme mais.

Em todo meu movimento,
Crua dor padeço em desalento:
O fogo fátuo das paixões caladas,
As bocas entreabertas desejadas
E todos os apelos da alma incansável
Que, na geografia dos quereres,
Entrega-se inconseqüente
Entre a carência e a plenitude.

A Flexa

Alvo do desejo, óleo da avidez, selo do destino ermo da semente
Ao léu lançada pela força do deus da carência e da plenitude,

A flecha de Eros é isso: o suor, o prazer, a dor, a fome ardente,
O abandono da paixão a torcer entranhas e a desmoronar a quietude.

É querer unir em desatino num só corpo águia e leão, vampiro e gente,
Tensão entre lucidez e demência, união entre a diferença e a similitude.