30 de dezembro de 2008

Cantiga ordinária

poema de Adriano Francisco Geraldo
Encher de cosmos o enfeite dos cabelos de outro
Sonhar é quase isso...

Quase não pensar
Isso seria o que nos é suficiente...

Quando ele ia arrastava a neblina consigo...

A desordem dos sons...
Uma cerca rangendo fecha a poesia...

Sou um poeta primitivo...

Fumo, cuidado, contra o vento
Não quero incomodar o sono
dos Marimbondos
Sobre a minha janela...

Os insetos já se acostumaram com minha ausência
São indiferentes a minha presença...

E a paisagem quando escrevo é minha...

Cubro-me quando vou dormir,
com as peles que não cacei,
com as linhas que não teci
e com os corpos que não amei...
Como hei de ter sono tranqüilo então?
Inda mais num dia de chuva!?

O destino, se é que ele existe, deve ser cheio de improvisos...

A ausência metafísica dos bancos das praças...

Um gerúndio é uma dádiva...

Em geral,
acho que durmo mal mas, ao longo do meu dia
Percebo que estou mal acordado como se
um sono ensopasse a roupa que é meu corpo...

Eu às vezes sonâmbulo
Eu ás vezes despertâmbulo.

Recado saído de uma garrafa...

poema de Adriano F. Geraldo

Homem ao mar...
Homem a amar...
Homem ao mar...
Homem a amar...

Psiqué

Há muito que não acariciava meus sonhos...
Meu coração quase silente e adormecido,
Compassava o fastidioso cotidiano desalumiado
Onde eu parecia estar bem por não me saber de ti.

Meu corpo, tanto tempo deserto e abandonado,
Refloresceu com tua visita, meu nômade estrangeiro!
É hoje tua alegre morada de lençóis amarfanhados
Em nossos gozosos embates de amor e desejo.

Minha alma inflamada despiu-se de seu entorpecimento!
Foi teu beijo, amado meu e ainda o sinto em minha boca
Descuidada em meus pensamentos onde me dou inteira,
Marca da minha entrega, prova de meu querer.

Entranha-te em mim, meu bordão, meu arqueiro,
E faça de mim teu alvo, tua cabaça, teu ninho!
Quanta água deixarei que tomes de minha fonte,
Por desvelar meu corpo e minha volúpia!

Ama-me toda, mas não me desperdices como se nada fosse,
Toma –me, leia-me, reza-me como um credo de teu prazer,
Apossa-te de mim que assim serei teu refúgio sagrado.
Ânfora e senhora, abrigarei o amor que me fez plena e tua!

O rio sem margens

Um poema de Adiano Francisco Geraldo

Onde coisas recomeçam quando o
Fluxo dos cotidianos leva tudo
Como um rio sem margens?

É triste, tudo é triste...
Porque estou triste, tudo é triste
Porque sou...
Fugir...
Mas impossível levar este corpo
Que sinto: começa a se decompor,
Num comboio que não existe!

Se sou dramático? Quem dera o fosse!
Sou fato, porque escrevo...
De resto, tudo muda...
Não sei, já tarda!
Algo que desconheço me é urgente!
Não sei, não sei...

Naufrago num rio sem margens!

Me sinto, não me compreendo.
Entendo,
Sem poder dizer uma verdade sequer.
Sou o rio sem margens!
Mas não sou!
O que vi, fui um rio sem margens!
Mas aonde? Pra que?
Não afirmo...

Quero morrer, mas não da vida.

noturno 12 - Sonambulismo Urbano

A noite recolhe seu negro véu...
Amanhece...
Os parceiros das sombras,
Pairam nos últimos bares, teimosos...
A última cerveja, o último olhar lascivo,
Um último abraço.
E eu troco copos e pensamentos,
Bebendo desencontrado
No rastro da noite.
Esqueço-me...
Depois, inevitavelmente,
Acordo troca-mundos.

Noturno 08 - Divagação de Mictório

Ergo-me.
A mesa do bar está cheia de pratos e garrafas.
A bela anca banhada em desejos efervescentes de lua
Está sentada do outro lado. A noite vibra na avenida.
Em algum lugar, presos a véus e lençóis torcidos,
Androceus e gineceus perdulários, após gordas colheitas,
Purgam ofegantes, a tiros de falos e espocar de vaginas,
O prazer entregue à dor de não resistir à úmida vontade...
E eu penso enquanto vou ao banheiro...
O purgatório oficial já não faz o menor sentido!
E muito menos o incoerente limbo do poder cristão!
Já o pecado...
Bem... Este pelo menos é original!

Síncronos

O rei olha para o bobo.
Arde o fogo e os cães dormitam aos pés do trono.
Homens encharcados de neve e aguardente
Aquecem-se entre gritos e pilhérias.

O rei está rico.
Rico e incapaz de sorrir
Nem por aqueles a guerrear e a morrer em nome de Deus.
O bobo grotesco canta e ri e o céu desaba.

Chove.
Chove no brilho dos olhos e em cada mundo
O tempo não permite esconderijos.
Não há lugar onde não grasse um tormento.

O ronco de um avião passa contra um céu cinzento e frio
Sobre latões de lixo em chamas em meio à sujeira urbana.
Postados entre poças d’água entre velhos e novos edifícios,
Mendigos aquecem as mãos sobre os fogos fétidos.

O rei dos ladrões disfarça...
Passa o papelote ao banqueiro no coreto do jardim
Enquanto insetos de metal revoam por ali
Em nome da ordem.

O rei ouve vozes...
Um poeta num quarto francês,
Um bobo entre as gargalhadas do tempo,
Deserdados da nova metrópole diante do fogo dos farrapos...

Percorrendo séculos em busca de Deus, o rei já não vê.
Um cão levanta alerta a cabeça e o olho brilha.
O olho brilha e o bobo ri...
E chove continuamente...

24 de dezembro de 2008

Sina

Eu o herdeiro de Édipo o Rei,
Confesso-me culpado pela pequenez
Diante do fado de perder as asas,
Diante do sofrimento da queda de Ícaro,
Diante da lúcida cegueira desse rei homem
Que descobriu, ser a culpa sua própria redenção.

Eu, culpado assim até a beira da morte,
Que volto ao limiar do útero da Terra Mãe todas as noites
Para me alojar numa vaga sugestão de aconchego,
Que busco me afastar a cada manhã
Mas continuo preso pelo umbigo a esse ventre,
Sou quem se abandona esquecido qual imortal à espera da morte.

Eu que vejo o decair dos deuses em suas misérias
E que por isso cego e não posso ter a paz do colo que procuro,
Descubro-me, em vão, a mão de minha própria sina
Que se cumprirá e na última noite
Tornar-me-á o feto apaziguado
No ventre da Mãe Eterna a me anular.

21 de dezembro de 2008

Abrolhos

Beijos de vento, penhasco acima,
Minha silhueta é uma sombra fria,
Olhos no mar e sonhos na noite.

Nem a luz, nem a fonte, nem o guia.
Imóvel, sou parte dos muros da torre,
Aquele que ascende a chama.

A ilha é o que sou, um ponto,
A boca do lume, o óvulo, o habitante do rochedo.
Na noite, o vôo é a metamorfose do inseto.

Sou quem ateia o fogo diante da lente e espera cego.
O que faço vem do que sou.
É pelo que não sei que faço a vigília.

16 de dezembro de 2008

Dente de Leão

Há nos campos uma flor rústica e selvagem,
Solar, resistente, pequenina e amarela
Como um minúsculo girassol!
É até fácil de encontrar. Basta desarmar a alma...

Não tem perfume. Não morre fácil,
Não precisa de cuidados.
E destaca-se nos olhos das crianças
E dos que não perdem esse jeito de ver...

Rasteira, oscila na brisa, entre ervas verdes,
Quase uma dança de mil ritmos,
Fitando o sol a gritar os nomes indizíveis de Deus...
Sem pensar sabe que é filha da luz.

Este é o enredo do poeta: perceber o acaso da flor,
Encontrá-la de repente entre seus murmúrios.
Assim é seu degredo do mundo: compreendê-lo,
Lendo encantamentos em suas entrelinhas!

8 de dezembro de 2008

Fingir

Há dias em que pouco nos resta de uma vida inteira,
E diante do homem apenas a verdade permanece.
Há tardes em que a noite ameaça com seus olhos negros de cigana.
Não há mais tempo para fingir alegrias.
Apenas a face real diante de um espelho soturno.

Tenho diluído minha cota diária de mentiras,
Em linhas instáveis e rudes.
E os olhos daqueles que as percorrem,
Nada encontram de mim,
Ou daquilo que um dia eu seria,
Se de fato existisse...

Tufões arrebatam os pequenos seres cá embaixo
E a poeira tinge de passado,
Toda uma existência.

5 de dezembro de 2008

Mesmo penso, existo...

Quero um orgasmo,
Antigo, buscado e universal.
Quero descobrir a massa absoluta,
O impensável céu que o homem vê.
“Vê, logo existe”.
Postulado, óbvio e simples,
Cravado em mim como um começo,
Vivo e enlouqueço a beira de um abismo.
A eternidade num instante,
Um milésimo de segundo para explodir...
Antes assim, ser um clarão de super-novas,
Todos os amores cravados na pele,
Do que absurdo e vago como crer
Que em se pensar a gente logo existe!

25 de novembro de 2008

Em minha pele

Em minha pele, todos os meus percursos...
Todos os sinais dos acidentes da Terra.
Em minha pele, meu grito e meu desejo...
Fêmea em véus e vícios da alma,
Linhas, cicatrizes, todos os amores insensatos
Como o teu, estão nela a me revelar.
Minha pele, urdidura dorida e derriçada...
Renascida de si, curada mais uma vez,
Guarda, entre sulcos sutis, memórias veladas
Que eu mesma esqueci:
Meus indistintos descaminhos
Noites de vento a sonhar inconexa,
Força de venenos e cios desmedidos...
Em minha pele ungida de acalantos,
Solitude em meus dispersos pensamentos,
Meus erros e acertos ficarão como hieróglifos
Sem ninguém que me queira decifrar.

19 de novembro de 2008

Inspirar, ver, espirar...

Vou sair pelos trigais desertos
A respirar fundo e a me doerem os olhos
No ar dourado, ouro de sol da terra prenhe,
A parir cor, vida, quereres e cios,
A dança das águas e o som grave do vento.
Ver o cavalo cair pesado, sôfrego e lento
E a morte ser-lhe concedida, certeza e sina.
Vou sair, a saliva a secar em minha boca
E dizer a mim mesmo que entendo e resisto.
Vou correr pelos cantos desertos das esquinas
Em plena sujeira de todos os dias,
Os pés sôfregos e lentos no meio da rua fria.
Vou ver o homem cair pesado e o fim em seu rosto
Certeza e fado, a luz e a sombra do tempo.
Não paro. A deslizar pelos trigais desertos,
Pelos caminhos das asas no coração,
A paixão, o penar, o amor e o ser,
A paz e a morte enfim no acolhimento da terra.
Inspirar, ver, espirar...

18 de novembro de 2008

Sina

Carrego o amor perverso do meu sangue
O jurado eterno amor das saudades e dos desejos,
O amor das perdas, das culpas, tão grande e enrugado amor.
Carrego o fardo dos irmãos acuados, corpo e alma,
O gosto amargo do estrangeiro em sua própria casa,
O pavor do filho que não sabe se foi querido,
Tão grande e enrugado medo.
Trago comigo as juras não cumpridas dos antepassados,
Seus pequenos e grandes crimes e deslizes encobertos.
Vivo a sina das condenações herdadas,
Os instantes perdidos,
Os pecados sem testemunhas e a vida por fazer.
O sangue não nega e eu nem sei quem fui
Nem quanto serei culpado.
Tão pequeno e enrugado ser.

7 de novembro de 2008

Nas janelas de teu rosto

Olhei janelas de teu rosto:
Observatório de telescópios
Para teus olhos astros.
Teu céu caiu em mim,
Constelações com jeito de borboletas.
E eu, eu a apontar lentes, eu a perscrutar
O que diziam as tuas nebulosas
Teu olhar fitei.
Andrômeda, mel e estrelas,
Sonho com teu corpo estelar.

31 de outubro de 2008

Janela

Abra a janela, vamos abra a janela!
Com o sol virão brisa e pó.
Com uma, todo o encanto,
Com o outro o ir do tempo.

Reabrir-se é permitir o arrebatamento,
Mas também é, despido, sujar-se
E aceitar naturalmente o desalento
Do que envelhece e morre.

Janelas e corações são para ver o sol
E permitir que tudo aconteça.
Luz, ar, pó e movimento,
Desejo e momento de continuar.

Morremos naqueles que perdemos,
Mas renascemos em quem amamos.
E assim, sem medo do desencanto.
Varremos o pó e reabrimos o coração.

Títeres

Nos estilhaços de palavras
Recolho cacos para um mosaico,
Fantasia de cores e versos.
Seguro por um fio que me prende,
Piso, descalço e descuidado,
Verbos e nomes, sangrando.

Ando nu sobre as pontas de vidro,
Vozes cintilantes, pensamentos.
Colando as contas brilhantes, danço...
E represento. De mãos dadas
A mim e ao fantoche poeta,
Fica meu coração no poema.

26 de outubro de 2008

Um último vôo

Tenho medo de meu grito de amor.
O rosto do passado cobra
E eu envelheço entremeado de desencantos...
Meus ossos, outrora silenciosos,
Rangem hoje com a falta de inocência.
Ensandecido, meu coração desanda.
Que fiz de mim?
Sou um arremedo do que fui
E trago comigo o anúncio de um trágico fim.
Ah alma minha!
Vem! Veste teu manto de criança jocosa,
Beija meu espírito lavado de humanidade
E troca as velhas pernas por asas
Que breve terás tua doce hora!
Um último e coruscante vôo
Sobre a demência!

22 de outubro de 2008

Em teus olhos

O que vi em teus olhos,
Loba ferida de esquecimento?
Elos, desvelos, memórias e apelos de tua asfixia!
Há neles um remoído esperar,
Moinhos de ventos dissolvidos...
Entre teus dedos, nada mais que o suor
Molha-te na inquisição dos medos
E urge teu desespero por não buscares.
Ao refrear o instinto tu continuamente deixas
O sonho por fazer. És véspera do que te trai.

Luta, e volta para ti, mulher quase vencida!
Redime teu ser selvagem e corre a te cumprir
Antes que percas de vez teu encantamento
E em tua jaula permaneças perdida e inerte
A te olvidar de quem fostes, tão livre eras...

20 de outubro de 2008

Os países de Alice III

O que seria de Alice
Se sua sombra nada fosse?
Se o perfume das palavras vagasse
Pelo jardim dos seus sonhos
E se perdesse?
O que seria da hora do fim:
Acordar? Ou seguir assim
Atrás de um estranho coelho...
Talvez atravessar outra vez o espelho
Ou viver à espera de si?
Que horas já serão?
Hora de ir-se... Ora!
E ir sem demora!

É o que farão.

poemeu 04 - Os países de Alice II

O que foi feito de Alice no país dos espelhos
A fiar maravilhas ao encontro de coelhos?
Teu gato entra e sai de tua casa
Dono de teus olhos e de teus bens.
Carrega a tua vontade em brasa
Como queres que sejam os sonhos que tens.
Buscando andas pelo mundo, descuidada,
Olhares sem perder nada do que olhas.
A mesa do bar, a fugidia madrugada
E os versos de tinta borrados nas toalhas.
É hora de ir. Os gatos também vão
É hora, vamos embora.

É o que dirão...

poemeu 03 - Os Países de Alice I

Que fim fez Alice num país das maravilhas
Diante do espelho desmontando as armadilhas?
Tua casa seduz do portão ao tapete,
Do banheiro até a saia da janela ondulante.
Piso mistérios em outras línguas de frete
Abandonando-me na névoa das canções, ignorante.
A procura de ti, nelas traduzes verbetes.
Fazes uma festa eu sei e sequei os meus cálices.
A festa é para ti e eu fui pelo corredor
a ler versos nas paredes, a buscar o fim de Alice
e tu danças em teu país acolhedor
e eu, eu já vou, eu vou embora...

Foi o que ele disse...

15 de outubro de 2008

Pupa

Feia, pegajosa e desengonçada...
Meu corpo...
Quero o resgate do abandono.
Quanta vida me pertence?
Do fundo de meu abismo,
Sou como sombra de mim mesma,
Mas sonho.
E desce uma calma melancólica
Sobre meus ossos partidos.
Adormecida, ouço claramente
Uma última voz em mim que diz
“Quero”.
Última trincheira, minha vontade,
Um calafrio toma-me inteira,
Vejo- me livre na escuridão.
E o nome dessa mulher é alma,
Minha noite densa por terminar...
E de repente o corpo curado
É mais do que um corpo,
É uma centelha, um clarão,
Minha véspera.
E essa mulher ressurgindo
Serei eu!
Voarei de novo, eu sei!
“Por favor, ame ”!

14 de outubro de 2008

Sacralidades

Seus apócrifos de letras bêbadas e disformes
Trazem-me à lembrança a Eternidade.
São letras salpicadas de sangue.
Sangue uterino, quente e pantanoso,
Relicário do líquido que me nutre e consome,
É ele que guarda o êxtase do seu amor em mim.
É nele que trago o delírio, a insanidade e a eternidade.
A cada ciclo, renovo-me para você.
Escamo todas as partes de minhas entranhas,
Numa liturgia sagrada para recebê-lo em meu ventre.
Sinto a presença do Infinito
Cada vez que seu corpo me consome,
Cada vez que sua respiração me suga,
Cada vez que seu grito me invade,
Cada vez que seu suor me umedece,
Cada vez que cai sua semente em minha terra.
Cada vez que você, meu Senhor,
Marca meu corpo com a voracidade de sua paixão.
Quando me empala, sou a mais feliz das mulheres,
Pois somos um. Estou completa. Sou inteira.
Por alguns segundos, não sou eu, não é você,
Dissolvemo-nos num universo.
Por isso, sua pele é a mais sagrada das vestimentas,
Seus pêlos guardam a essência do seu sal,
Sua boca é o receptáculo de meus pedidos,
Sua cruz, rija e sagrada, é minha penitência,
A mais preciosa.
Você é aquele que me traz esperança,
O que me completa no delírio e no arrebatamento...
Aquele que me devolve a mim,
A filha da Deusa!
É essa a marca que trago indelével:
Onde quer que você esteja, meu amor,
O desejo de que volte sempre para mim.
Mas, se um dia, meu Senhor,
O retorno só acontecer em minhas memórias
Ainda assim serei grata ao Universo
Pois saí da escuridão, da vida sem o amor.
Entrego-me, a partir de agora, nos braços da Liberdade...
Que ela me livre da insanidade estúpida
E me jogue no colo da loucura cega
A eterna busca de mim mesma.
Sou, agora, meu tesouro,
Como o filho pródigo e o pai:
Recebo-me bem-vinda!

Chaga

Um torvelinho de sentimentos
Traz-me à boca o coração.
Amargo torpor do desespero,
Percebo-me inaceitável...
A mariposa perdeu a si mesma.
Transformei-me na lagarta
A devorar tudo, insana,
Longe das asas para voar,
Feia, pegajosa e desengonçada...
Meu corpo se tornou uma morada
De tristezas, absurdos e nostalgia.
Como uma úlcera, a dor de minha alma
Dilacera meu corpo e meus pensamentos
Corroendo feito ácido a sanidade e a graça!
Quanta vida deixarei que passe?
Quanto amor jogarei no abismo?
Quanto de mim a metástase já terá tomado?
Mergulho.
Sei que ainda serei pupa a esperar...
Última trincheira, minha vontade,
Alguém me chame, por favor!

7 de outubro de 2008

Tela de Toulouse Lautrec

Óleo sobre tela...
Pintura de Toulouse,
Visionário preso por suas pernas.

E eu,
Prisioneira cega de um fim translúcido,
Sou esse quadro de uma prostituta!
A mulher que é eterna, mas não sabe disso...

5 de outubro de 2008

A Tua Carícia

Ah amado meu,
Interminável
anseio a me devorar,
Diante de ti caio de joelhos.
Preciso ouvir-te,
Saber de teu amor...
Longe de ti não tenho paz.
Não se desfaz a dor de tua ausência.
Simplesmente tenho medo
De que não me queiras mais.

A chave de meus portões
Já a tens e quando vens e entras
Em meu jardim, e danças
Nas terras úmidas de meu ventre,
Sou outra, sou calma, sou entregue
No aconchego dos teus braços.
Teu rosto em meu regaço,
Esqueço-me ausente
Do temor que me persegue.

Ah, meu desejo, meu amante,
Queria-me ver sempre tua assim.
Mas em mim, na solidão,
Quando aqui já não estás,
Ouço a voz de meu porão,
Meu triste e entranhado ser,
Que eterno jaz a lamentar
A dor de não poder dizer
Quem sou de fato eu inteira a te amar.

Se porém, um dia,
Firme como um homem-menino,
Pousares isento em meu dorso
Tua mão amável e acarinhares
Minha pele cansada de arrepios,
Eu abrirei essa entrevada porta
E libertarei o ser de meus vazios,
Minh’alma a sorrir para ti apaziguada,
Luz em meus olhares a me revelar!

1 de outubro de 2008

Amar Verbo "Transcenditivo"

Amar, amar, amar...
Mesmo sem rumo,
Do meio da vida,
Amar.

Mesmo com medo, ou caindo de joelhos,
O querer a qualquer custo, o penar!
Acesos como tochas, almas desejosas,
Amar nos vales quentes e úmidos
Do coração pedinte.

E se, chegado o dia de subir o monte último,
Vasto, alto, abismal e frio,
O espírito titubear na hora de partir,
Ainda assim amar a imensidão da entrega,
O apagar da chama humana, o retorno ao nada.

30 de setembro de 2008

Simulacros

Chovem garrafas,
bebem goles mágicos, puro malte,
espuma loira da solidão rindo alto, monstros gentis
encurralando amigos velhos. Olhar triste de bicho ruminante
e boca sorrindo de batom, reboladança a bunda no som
do sábado ávido, copo de cerveja platinum blond
e muitas horas, mesas de mentiras e mijadas públicas depois,
o cheiro da madrugada despe máscaras
do corpo indecifrável e completamente só.
No fim da noite nada haverá senão
estilhaços, ressacas e maresias.
Amanhece o dia...

29 de setembro de 2008

Nós...

Ouço uma canção, mas é irreconhecível.
Vozes de mulheres e telefones insistentes
Em mim no ar da tarde.
Pensamento:
Onde estão?
Uma imagem:
Lembrei-me de você Maso,
Na porta de um longínquo cemitério,
Você chora, indefeso.
“Quantos de nós? Quantos ainda terão de ir?”
Todos, eu sei.
Nós que aqui estamos por voz esperamos.
Estamos?
E você também se foi...
Passa ruidoso um carrinho de limpeza pelo corredor.
Toca um bip quase imperceptível.
Em mim um tédio sem remédio...
Sentimento:
Onde estão?
Será que “estão”, será que esperam?
Entram aqui duas mulheres...
Oi, vocês. Vieram me varrer, é?
Uma passagem:
Você tinha planejado tudo, Lúcio,
Mas a vida beira a inutilidade de propósitos
E você não esperava.
Tinha medo de sufocar.
Eu também tenho, penso.
Nós aqui de fora temos medo dessa hora.
Amém! Amém?
E perdi você também...
Meu coração ruidoso em minhas veias,
Bombeia-me teimoso.
Um fim em si próprio meu ópio...
Tormento:
Onde será que estão?
Uma viagem:
Perdi-me de vocês,
Zé Ary,Angelina, Nelson, Vítor, Maso,
João, Lucio, Ana, Luciano, Adilson...
Na hora morta desta tarde de recintos fechados
Desmorono, impreciso.
“Quantos de nós?"
E quando nada mais serei?
Nós que aqui estamos por voz esperamos.
Esperam?
Eu também irei...

O Chamado

Febre nos teus olhos.
Os uivos dos lobos
Chamam no vento.
A voz é um lamento
Atravessando séculos.
Loba-mulher,
Duro é o caminho
Do resgate:
Viver inteira
Para além de todas as espadas.
Lobas não fazem guerra,
Fazem vida.

Teu Nome

Quando te conheci
Foi um enxame de palavras ao vento.
Percorri teu corpo até penetrar em tua carne macia.
Quase sufoquei.
Depois, certo dia,
Tuas sobrancelhas emendaram uma dura moldura
Para teu olhar distante.
Vaguei pelos desertos de tua pele a me perder.
Perscrutei teu rosto tantas vezes que me acabou estranho.
Sondei teus lábios em vão.
E então como revoada de mil pássaros
Saí de mim a gritar teu nome.

20 de setembro de 2008

uma última litania

E repetirei as palavras
Tantas e tantas vezes!
Vermelho vivo, incandescente,
Brilho da tragédia,
O fim:
Tristeza intransponível,
Não há mais tempo!
Toda a consciência a tornar-se inútil...
E repetirei as palavras
De novo,
E de novo,
Mas nada mais significarão:

Compaixão,
Generosidade,
Dignidade,
Honestidade,
Amabilidade...

Depois,
Depois será o esquecimento...

Bebe-me!
Bebe-me!

Há uma bandeira
Estendida sobre a miséria
Numa carroça de catador de rua...
Há uma nua e alva nuca de mulher
Adormecida à minha frente...
Tristeza insondável do fim:
Não há mais tempo!
Insensatos pesares,
Poder & Glória,
E o tempo
A queimar o espaço,
Acontecer...


Últimos dias de paupéria:
Num imenso depósito de lixo,
Deslizo pelos soluços do desespero...
É o brilho cego dos olhos
Que querem
Crer!
Mas é inútil...
É tarde,
Tampo os ouvidos!
Silêncio de coração,
Meu sangue corre,

Dorme, ouço...

Não! Perco-me no caminho...
Ela olha-me nos olhos:

Bebe-me...

Estou no eixo do mundo
Relembro as palavras
Que hei de repetir
Tantas e tantas vezes...
E aquela mulher fita-me nos olhos

Dorme, dorme!

E está sorrindo:

Bebe-me, bebe-me...

E mais nada...
Aquela nuca de mulher,
Fria & nua é como uma tempestade.
Estou no tempo, encharcado de segundos,
Acima dos reinos, acima de meu caminho...
Explode a eternidade: uma fotografia,
Uma imensa fotografia!
Tudo é vermelho,
Brilho da tragédia
E pergunto onde estás?


Velhos amigos somos eu e essa dama!
Abrir esse reino, uma porta!
E eu a dizer as tais palavras
De novo,
De novo:

Compaixão,
Generosidade,
Dignidade,
Honestidade,
Amabilidade

Mas não há mais tempo...
Isto é o fim!
Depois, o esquecimento...
O corpo do deus que morre
Brilha tal qual uma chama imensa,
Mágica:

Este é meu sangue
Bebe-me, bebe-me
Ama-me...

O bravo homem se levanta
Num quarto
Onde revê acordado um sonho
De amor!
As palavras no feminino
A soar
Na sua insônia...
E ele a tentar dizer outras coisas,

Claridade,
Bravura,
Honra...


Não, não, não,
Não, não!


Nada virá senão um grande esquecimento,
As palavras nada significarão!
E aquela linda mulher que agora esconde a face
É a derradeira!
E eu prestes a repetir as palavras...
Não, ainda não!

Cede,
Cede...
Nem que seja uma grama de alma,
Nem que seja um instante, fragmento,
Toda a eternidade!

Ceder, diz ela...
Aquela nuca vulnerável de mulher
É a minha também.
Ergue-se como um rochedo lunar esquálido,
Nu sob a luz deserta do sol-lâmina
A queimar,
A cortar...
Ondula a bandeira entre os latões de lixo em brasa.
Nada perguntarei, pois tudo vejo.
Não há mais respostas...

Ah divino fruto do sagrado ventre, repete teu êxtase
Nos corpos arrebatados das mulheres que amei!

Só a mais antiga litania,

tempo,
terra é...
tempo,
vento é...
tempo,
fogo é...
tempo,
água é...

tempo, tempo

tempo...


O filho e amante da antiga deusa viva
Foi morto enfim
E ressuscitou...

ressuscita então

diz ela, rindo!

este é meu corpo, este é meu sangue

Bebe-me penso eu...
Aqui, estamos nós, outra vez, e outra...
A última comunhão, o derradeiro encontro:
Carne dos inocentes,
Um Deus tantas e tantas vezes assassinado!

Come-me, bebe-me e estarei em ti.

Nada a dizer, não há respostas
Só uma voz amável a balbuciar eternamente

Onde quer que esteja tua face,
Estarei contigo...

E o espírito assim tragado, sacrifício,
na tragédia, renasce...
Nova bandeira sem significados
Há de tremular sobre as estradas,
meus caminhos...
E diz ele:

Mãe perdoa-os porque sabem sim o que fizeram...
Pune os infames e salva-os de si!
Ah, maior amor dos mundos, abre teu reino, mãe!
Pune os homens com o ardor do teu carinho!

A eternidade explode em miríades de raios
Luz em negro nada, imenso clarão,
A última imagem...

Dorme, dorme...


E eu a dizer as últimas palavras:

Compaixão,
Generosidade,
Dignidade,
Honestidade,
Amabilidade

E será outro tempo!
Amar o deus do sacrifício sem matá-lo,
Redenção do esquecimento,
Eu & tu, minha dama de branco...
E o deus levantar-se-á, filho e amante
Da eterna deusa!

bebe-me, bebe-me e serei em ti!
Serei o que ama esse ser perverso que sempre foste,
Serei o que retorna e retorna e retorna...
Mereces-me? E isso importa?
Bebe-me!
Entre tuas blasfêmias estarei contigo!
Onde recomeçares estarei contigo!
Onde pousares inocente tua mão estarei contigo!
Onde não pensares mais estarei contigo!

Essa é a tragédia!
De novo, e de novo,

Compaixão,
Generosidade,
Dignidade,
Honestidade,
Amabilidade,
Paz
E a Morte...

Onde recomeçares estarei contigo!
Onde pousares inocente tua mão estarei contigo!
Onde viveres estarei contigo!
Onde não pensares mais estarei contigo!
Onde não fores mais estarás em mim!

18 de setembro de 2008

Amáveis espectros

São fantasmas esses seres mal tecidos,
Estendidos no inferno como roupas no varal,
Máscaras estranhas carregando o antigo fardo da semelhança,
Figuras nostálgicas olhando através dos espelhos
Quase imóveis como reflexos em poças d’água.

Quadros de um filme sem cortes na fábula sem moral,
A poesia sem poetas, os sonhos sem censura,
São anjos rotos velados pelo medo de ver na hora de fechar os olhos,
O reverso das moedas, o outro jeito, não premeditado de dar o passo.

Doces sombras emudecidas pela covardia do homem vil,
Agarrado a seu obscuro anonimato, pretensamente invulnerável,
Esses elfos esperam pacientemente o abrir das portas
Vagando amáveis e obstinados nos jardins de todos os paraísos perdidos.

13 de setembro de 2008

Onde deixo meu amor

Os seios macios e quentes da pajem que me carregava ao colo
Enquanto eu pequeno via deslumbrado as estrelas,

O primeiro beijo, dado em Marli
meu tortuoso caso de amor colegial,

Os delicados dedos de Blanche
Que me ensinava a tocar piano ,

O olhar sonolento da aluna adolescente
Que fazia a prova bimestral,

As pernas da bailarina bem diante de mim
Dançando etérea em meus olhos,

A boca da enfermeira da madrugada no hospital
A mordiscar distraída o lábio, caçando minha veia difícil,

Os joelhos de Fernanda que cercavam o violoncelo
Enquanto absorta tocava com a arte de ser mulher,

As ancas frementes e ondulantes de Irene,
A professora distraída a escrever na lousa sua aula de inglês,

As sedutoras mãos de Helena, lindas e ondulantes,
Sutil expressão gestual que dizia mais do que suas palavras ,

A avidez delirante da língua deliciosa de Sumie
A me beijar loucamente com “boca de peixe”,

O tornozelo com correntinha de ouro, fetiche de Ida dos Anjos,
a sagitariana de meus delírios passionais,

A arrebatadora bunda roliça que Selma, de bruços,
Empinava a gemer e a chorar possuída de prazer,

As sobrancelhas grossas da cabocla, vinda de Tupã
Que precisava de ajuda para achar o irmão em São Paulo,

Os olhos verdes e fundos de Ligia
A me fitar apaixonada e carinhosa,

O corpo sensual de Silvana que me amava inteiro,
Intuição e justiça do cavalo e da cobra, a paixão mais amorosa,

As coxas entreabertas de Cássia, sôfrega,
O rosto em brasa, pedinte,

O colo quente de Vilma depois de fazer amor, ofegante,
Agarrada comigo, entregue pelo prazer,

As três marcas do rosto jovem e decidido de Débora,
A menina do olhar lunar firme como um quebra-gelo,

O iridescente sorriso de Gláucia a vender coca-cola e cigarros
Na loja de conveniências um instante antes de eu partir,

A voz encantada da faxineira de Fernando ao telefone
Que mal sabe o quanto é sensual falando comigo,

Os deliciosos pés de minha fisioterapeuta, usando sandálias
Que ao mexê-los bolem com minha imaginação,

O rosto iluminado de Carolina, minha amada filha,
Metamorfose de criança em mulher, incansável ao se buscar,

A face oculta de mulher, o lindo e encantador vampiro
Com jeito de menina a devorar náufragos no mar da Internet...

Minha procura é sina e fiz dela o motor de meus dias.
Onde está meu amor? Onde se espraia? O que guardo comigo?
Todos os encontros...
Onde meu coração foi arrebatado? Onde?
Em cada mulher que vi, vivi, percebi, amei,
Instantes eternos...
Em todas,
O fascínio pela alma feminina!

Não descanse, coração,
Por favor, não
Que, para isso há o encontro com a derradeira mulher!

12 de setembro de 2008

Explode coração

Noite de verão na primavera...
tudo são chamas a minha volta!
Meu corpo grita
Todos os cacos pelo chão...
Chora coração zagreu,
Chora!

Metrópole

São Paulo.
Hospício a céu aberto,
Loucura ministrada cotidianamente...
Dosagem: 4 horas de trânsito diário,
De Leste a extremo Sul.
Entre um e outro,
O infinito de semáforos indiferentes à nossa pressa
E de luzes vermelhas à minha frente.
Pés no freio.
Um pássaro cortou o céu displicentemente
(Primeiro sinal de liberdade desta tarde acinzentada)
Suspiros e um olhar de relance para os lados,
Vidros escurecidos,
Visão escurecida.
Olhos fixos no caminho ainda não vencido
E no radar indiscreto pronto a punir minha urgência de viver.
Outro suspiro quase conformado.
O pássaro já deve estar em seu ninho e eu,
120 metros a frente,
Uma vida pela frente,
O infinito vermelho à minha frente...

(Uma flor rompeu o asfalto,destemida e ingênua
Sem saber que encontraria além de nuvens de fumaça
A cruel indiferença humana)

A mesma mulher passa por mim todos os dias:
_Olha a água, suco, refrigerante!
_ Moça, tem porção de paciência?
(risos)
_ Vixi minha filha, essa acabou faz tempo!
Quem sabe amanhã...

Sábia mulher.
Amanhã...quem sabe amanhã...

Por hoje me bastam os membros doloridos
Pelas muitas sirenes exigindo passagem,
Pelo mar de motoboys exigindo passagem
Pela infinidade de pedestres exigindo passagem...

Amanhã...quem sabe amanhã...

O meu rapaz...

Toque-me fundo em meus desejos,
Sou minha, sou sua...

Ai loucura, você a lamber meus seios
E a percorrer meu corpo nu...

Eu, a querer e a devorar, eu sou estrela,
Você, gentil propósito, o terno amante.

Mimo dos encantos que me prendem,
Sinta-me! Você é meu! Você é meu!

Um desejo inconfesso, segredo sob o véu,
Encontro que seduz, sou lua vermelha!

Agarre-me assim gostoso pelas ancas
E ponha-me de quatro a tremer e a rebolar...

Eu entrego os pontos, venha me tomar refém,
Ai, amor, venha dominar sua menina!

10 de setembro de 2008

Noturno 07 - Notívagos

Fico na janela a fitar a noite à toa...
A garoa desenha nas ruas
Um translúcido mundo de contornos.
Soturno, ilícito e de costas para ti,
Busco adivinhar no vidro os olhos réus.
Estranho e doce corpo o teu.
Amor de aluguel, olhos de vitrine,
Disfarce noturno de fingida caça.
Dói-me o coração tua carícia,
Alicia-me caindo como um véu.
Boca lânguida de amante de bordel,
Por mais que me alucine
Não me enlaça
E sinto só tua morna perícia
Ao fingir desejos que são meus.
A hora passa e a noite escura se desfaz.
Você dorme entre lençóis impessoais...
Arrefece a chuva, amanheceu.
E, na rua, a sombra etérea
A ir-se ao léu entre os demais
Ainda sou eu, ainda sou eu...

Noturno 13 - A lua & a alma

Todo fragmento de lua
Busco ver em encruzilhadas,
Pedras ao léu atiradas nas esquinas,
Folhas mortas de relva,
Madrugadas e olhares.
Todo encantamento da lua
Pego nas poças encalhadas
Vida de armada entrega e sina,
Notívago desta urbana selva,
Mar de transeuntes e penares.
Em todo movimento da lua
Poesias cruas encontro atiradas,
Paixões caladas, bocas e apelos,
A cartografia para Passárgada,
As pontas dos meus novelos
E o desvario de minha alma nua.

9 de setembro de 2008

Mensagens

Um peixe flecha teu pé, carícia, aviso do mar,
Aviso aos navegantes, velas ao vento o sonho não se esconde,
Onde está você que não responde ao chamado do horizonte.
Desta cidade, deste cais, uivos quase silentes, boatos e apitos,
Partem navios e poemas, correm nos fios telefonemas,
Oceano virtual: mensagens, estreitos, sargaços e passagens,
“Ôi, sou eu”,
Navegar pelas sensações em mim, eu preciso.
No mar, vento motor, qualquer lugar será meu.

As ilhas

Beleza da ilha nevoenta e chuvosa
de nascentes, praias, morros e barcos
e navios e caminhos,e o sol, ah o sol,
os pensamentos nas esquinas de São Paulo,
velha puta que do planalto manda esgotos,
saudações repugnantes aos moradores da orla do mar
bosta petróleo, ilha porção de terra mater
dolorosamente cercada de água por todos os lados
que a chuva une e pune,
raiva de paulistano ano que vem será melhor de nascentes
e borrachudos e pensamentos de névoa branca, fumaça,
São Paulo da garoa morta atrás dos jardins destruídos
das praças que existem já não existem beleza de falsa ilha
do planalto cercada de lixo por todos os lados
e que a chuva de balas une e imunes paulistanos
de “caramarrada”, “cu na mão lá vem o guarda”,
vão sair de viagem para o litoral de sul a norte
a espalhar sonhos, desejo sina e morte pelo mar,
sistema Imigrantes Anchieta dorme filhinho
nas curvas da estrada de Santos, ferida fera
azes lotam ônibus farofa e frango, futebol e insolação
ou norte balsa, balsas de travessias soltas,
solto a voz nas estradas alguém que vi de passagem,
cento e setenta quilômetros e beleza de ilha névoa e chove,
chove penso e chove, chove penso e acordei chorando
e chove, chove e chove, chove e chove, chove...

7 de setembro de 2008

A Deusa e a Filha

para Vanessa
A Deusa

Ishtar, Estrela sagrada,
Deusa, que vespertina desces
Engolida nas profundezas da terra,
Lembra-te, deusa do touro, Vênus planetária,
Que um dia, ao amanhecer retornarás ao céu.
Morres despida de corpos a ir ter com a Deusa Escura
No ventre das profundezas da Terra Mãe.
Virás ao céu, porém, ascendente,
Revelando-te sobre o horizonte,
No limiar do infinito.

A Filha

Filha encarnada da divindade, mulher poeta de Touro,
Enquanto perambulares pelo mundo,
Faz cumprir tua sina sagrada de ser:
Escreve versos e deita-os fora em velhas garrafas
Atiradas aos mares a encobrir os labirintos dos homens.
Alguns com certeza os recolherão
E se verão inscritos nos ecos de tuas palavras.
Cumprir-se-á então a deusa, o mar, a alma e o poema.

4 de setembro de 2008

SEM TÍTULO


Estranho ser de fel a mergulhar dos próprios céus,
Grave escória, campina de estilhaços,
Irrisória trama que me enlaça,
Clama por mim no caos de que regresso.
Estremece os laços de meus presságios,
O eco do ardor contido em teu cerne.
Vem, meu adorno, grita então meu nome.
Resvala tua anca em minha anca a me seduzir com teu sexo.
Triste e circunflexa, parida dor de minhas sombras,
Vem, saudosa, tocar-me com tuas mãos ávidas de esperma,
Assoma-te com tuas garras de rapina
Até que estejas em mim, inútil pergunta para respostas ermas.

Sonho meu a emergir dos próprios véus,
Breve memória, cortina de fumaça,
Aleatória bruma que me abraça,
Chama por mim nos vaus que atravesso.
Repete às avessas o fim das palavras,
O eco do amor perdido sem retorno.
Vem, meu contorno, sussurra em vão meu nome.
Roça tua boca em minha boca a dizer coisas sem nexo.
Doce reflexo, curadora de meus escombros,
Vem saudade, toca-me com tuas mãos úmidas de espuma
Assombra-me com teu chamado na neblina
Até que sejas, em mim, inútil resposta para pergunta alguma.

Narciso

Vem beijo água,
Cortina.
O passado mente.
Toca lânguida
A boca do tempo
A minha boca.
Língua estranhamente doce,
Cálido abraço nu
Diante do que não vejo,
Vem corpo meu, destino,
Copula comigo,
Meu espelho.
A noite se esvai
No relevo das sombras.
O presente é uma soleira de porta.
Vem lembrança, desvario.
A passagem consente
Penetrar na memória.

1 de setembro de 2008

Escultura

Com o cinzel de madeira e grafite
Vou entalhando vidas no papel
Traços finos e grotescos emergem silenciosamente...

Esculpindo suavidades
Murmúrio de asas etéreas
Vôos brandos por sobre rochedos
E brisas descendo o penhasco.

Golpes acentuados e
Rebentam olhos absortos,
Fadigas intermináveis
E um tempo que não se afasta.

Fragor colérico (e suor vertendo em fio)
Irrompe assombrosa a Verdade
Face oculta, omitida,
Bruta e descomunal.

Ao fim do trabalho,
Corpo inerte e cinzel deitado sobre o tempo
Observo a obra magnífica:
Matéria prima, alva,
Novamente límpida,
Intocada e virgem.

Escrever é a eterna arte de recomeçar...

31 de agosto de 2008

Diário 02

A casa vibra de motores obsessivamente domésticos.
Os livros adensam-se nas paredes.
A janela sopra, fria.
Chove, já não chove.
Maquio papéis com as palavras...
São versos e vícios tatuados a esferográfica,
Moto contínuo.
No dia seguinte estarão unidos,
Ecos e tinta
E mentirão descaradamente.

Diário 01

Na noite de domingo
Séculos de segundas feiras.

Dar corda aos relógios,
Todas as guerras na memória.

O dia seguinte
É pontualmente cotidiano.

A última batalha:
Ontem são só escombros.

A ilha dos teus segredos

A língua da noite é áspera e fria.
Velejo e, no hálito do vento, não ouço segredos.
Teu rosto surge na maré das mesas.
Para ninguém olhas, brilho quente de âmbar!
Ilha, teu pensar é terra mas não dizes palavra
E eu vou navio fantasma a vagar por carnes e ossos
Enquanto a noite abre sua boca de oceano
E lambe meu corpo com sua língua dura.
Procuro teus olhos, águas vivas, em vão.
Observo teus recifes por onde sonho navegar,
Desejando meu naufrágio em teus escolhos
Só para ouvir os teus segredos.
Navegar é impreciso, mesmo pelo mar de meu amor.

Paradoxo

Eu não te quero,
Eu te quero muito mais.
Porque desisto,
Porque te deixo ir,
É por não dizer assim
“Não vás ainda, amor, não vás”.

Eu te espero
E te desejo por demais.
E é por que resisto
Que só te prendo ao insistir
“Olha para mim”
Quando tão linda aqui já não estás.

29 de agosto de 2008

Só por hoje...

Só por hoje peço permissão para sofrer
Que meus olhos não se envergonhem,
Que meu coração não se envergonhe,
Que minha poesia não se envergonhe,
Pois hoje tombaram covardemente...

Amanhã é outra história.
Quando o sol nascer
Estarei de pé novamente,
Firme, resoluta, confiante e quem sabe sorridente...
Mas por hoje apenas,
Suplico por meu direito de sofrer
Somente hoje (e quem sabe pela eternidade),
Manterei distância da ditadura da alegria forçada,
Obrigatória.

Quero a verdade
A simples verdade de saber-me humana,
Pés no chão, sangue nas veias e lágrimas nos olhos
Quero a doce transparência de saber-me carne e espírito,
- Sem nenhum intervalo entre ambos -
A suave e quase nula surpresa
De descobrir-me universo,
De aceitar-me terra
E desejar-me semente.

25 de agosto de 2008

Três Marcas


Três marcas, pequenas manchas em meu olhar
e os homens jovens que falam de grandes idéias
e algumas frustrações
que tuas visões de criança deusa
atravessam como um certo quebra-gelo
entre icebergs de velhas águas.
Três marcas e a proa de teu olhar
quebrando sonhos e estátuas de falsas liberdades
e meu estômago pegando fogo
e meus ideais morrendo
na falta de surpresas que me dêem motivos
para mudar de rumo e é domingo.
Sei de todas as sementes
e de muitos sentidos
que não ouço mais nas entrevistas.
Vejo-me como um bêbado bobo,
observador de passagem,
num acampamento de desesperados
com um objetivo que já não é meu.
Teus olhos negros singram gelos em mim
que observo os três pontos,
constelação do tempo,
redemoinho em teu rosto.
Refaço caminhos sem retorno e sem trégua,
homens sinistros que não sentem nada
e homens que sentem demais
para não fazer absolutamente nada
que não seja beber intensamente
como estar diante das horas do fim.
Três marcas da mais tenra pele da inocência
a comerem a vida
enquanto ouço estrondos distantes,
a desmoronar meu coração de ossos
por querer mais do que sonhos estúpidos
e mais que estampidos mecânicos
de um vermelho domingo azul,
sem tréguas para amar.
Três manchas a delinear o fim da tarde
com teus olhos corta-gelo
de poderoso navio errante
que só parece ter um rumo
mas que não sabes qual é
e se é o teu.
Com certeza estou a errar
e minhas andanças dissolvem-se
na névoa do oceano gelado
em que sou pedra d’água,
montanha efêmera de vida e gelo,
ida na tentativa de entender
minhas ávidas paixões desertas
como tu atravessando meu mar
com três marcas no rosto
e teus negros grandes olhos.

22 de agosto de 2008

As palavras em mim

Toda minha vida em pequenos sinais.
"Caminhos pedregosos, não permaneça. Apenas passe".
Liberdade, siga o vento!
Os pneus impedem a decolagem...

Amigos momentâneos
No meio do caminho
Destino no retrovisor?
Todo ao contrário.

Da partida à chegada, o vazio.
Apenas.
Perder-se e encontrar-se
Para isso, a poesia
(A estrada de passagem)
Abraço de asfalto
Quente, palpitante.
Delírio? Miragem? Sonhos?
Não... Simplesmente palavras.

Poema de Vanessa Marques

Inútil Vigília

Espreito insone,
Em minha escuridão.
Está densa a noite...
E a solitude vem medrar das sombras
E atormentar meu silêncio.

Nessa hora morta
Sou um espectro arredio.
A alma chora desfeita
Entregue e sem retorno
Qual fantasma angustiado e vazio.

Sussurro um lamento...
Aquiete-se coração meu,
Não há outro jeito!
As asas da falena, puídas,
Desmancharam-se pelo chão!

Impossível voar depois que se cai.
Há de se recomeçar pela lagarta:
Devorar e ceder à metamorfose.
Amar é o motor e a decorrência.
Um dia secar as novas asas e ascender!

17 de agosto de 2008

Andrômeda & Perseu


Ah meu amor, que enorme dor é essa!
Com a cabeça de minha mais sombria górgona
Quero petrificar o monstro que te alcança!
Mas o crânio coberto de serpentes
Que ergo firme com meu punho esquerdo
É meu próprio medo, o mais profundo.
E o teratológico ser que das águas vem devorar-te
Em verdade emerge de tuas mais indizíveis entranhas...

12 de agosto de 2008

NOTURNO 16 O fantasma em mim

Doce espectro que me segue nas ruas desertas,
A noite avançada em meus delírios nus.
Eco dos meus sapatos no fim do caminho,
És silêncio ao me voltar a ti. Vejo-te, não te vejo.

A noite é mãe e seu colo é este gueto sujo.
Fiel como um cão, tropeças em mim nas encruzilhadas,
Arrastando teus trapos à procura dos meus.
Tento surpreender-te na próxima esquina, olho não olho.

As fábricas ressoam em distantes boatos,
O coração que se ouve do útero é o pulsar da solidão.
E eu penso como deve ser teu rosto, minha sombra,
Sinto-o triste, mas não o encontro! Estás aí, não estás...

Engendrado neste ventre urbano imagino-me só
E quase perco tua pista sutil, quase sou eu, quase não tu.
Procuro teus andrajos brancos, paro, ouço, espero...
Estás aí, meu reflexo? Dize-me, estás aí? Ou melhor não?

Silêncio diante de ti meu espelho, silêncio de mim.
Tentarei de novo na próxima esquina, vejo-te, não te vejo.
Triste meu rosto, espelho! Sinto-me, não me sinto...
Ai, meu espectro, responde: estás comigo ou sou eu só?

Ir-se...

Todos os sinais na estrada: curva perigosa, não ultrapasse,
Passe apenas, liberdade nos pneus, vento...
Acelere, paisagens momentâneas dos caminhos sob o céu.
Dirija com cuidado, use o cinto, preso ao movimento,
Destino de pára-brisa, sempre ir, pensamentos no horizonte.
Partida e lugar comum, todos os lugares todos um,
O brilho do asfalto é um espelho de líquidas miragens,
O olhar, a pista, e a viagem instantaneamente eterna...
Encontre-se pelo menos de passagem: siga.
Não se detenha entre as margens à sua volta,
Não pare. A estrada é para isso: embora sem ir, ir embora.

Entranhas de Metrópolis

Você está na área de tiro à espera de um "dia feliz".
No corredor da estação há uma passagem como uma janela.
Uma velha estátua com olhos sem pupilas fita, cega, o nada.
Há choro e riso. Há muito barulho, ondas de rádio e ranger de trens.
A faixa amarela nunca deve ser ultrapassada.
Você está na área de tiro à espera de um “dia feliz”.
Corpos amontoados ao pé da escada arrastam, suburbanos,
Amores perdidos, trens perdidos, olhares perdidos, olhos de pedra.
No fim da plataforma há uma fresta como um caminho.
As mãos de um atlas catatônico sustentam um desconcertante mundo,
Gesso, pó e cimento, diante de todos os fantasmas das gerações vagantes
Que passaram sem destino conhecido, indiferentes, no insano retrato,
O descaso da partida, o desterro da chegada.
Cuidado: porta automática. Aguarde o sinal.
Você está na área de tiro à espera de um “dia feliz”.

Ginsberg & Presley

Calado diante da tela ouro eletrônica
de um perdido computador dinossauro
vejo velho o novo que envelhece em dias,
a lama da antiga criação.
Calado diante dos cajados infames,
tapas na cara irremediáveis,
calado diante de Ginsberg ao ler Meu Amo,
o amor armado da servidão,
Fico apenas calado.
Range sutil a morte das palavras na memória vil,
bancos de dados.
Ao ouvir Presley "You were allways on my mind",
como se fosse Presley,
bancos de dados estão a confirmar se verdadeiro ou falso
como se pudessem,
deixo-me ruir incapaz de retornar,
abelha ao fim do dia, entre sóis artificiais.
Calado diante do ouro de teus cabelos
e das luzes de sódio-sol noite,
calado diante dos cartazes, dos apelos e das violações,
Calado diante dos últimos inventos,
das horas da indiferença, da meia vida,
fim de mim e do século da velocidade,
eu, cansado, desapareço inútil e silente.

5 de agosto de 2008

Mande um aviso

Alô?
Alô...
Sou eu...
Que silêncio o seu...
Branco papel...
Meu mel...
Meu fel...
Após o terceiro sinal,
Deixe sua mensagem...
Clic...
Tu… Tu… Tu...

Seixos

Dois velhos seixos,
Arredondados seixos
Imersos no leito do Nilo,
Fundo de uma velha correnteza,
Noite dos tempos.
Nem Isis incansável os encontrou.
Vida das marés,
Carne de Osíris,
Pedras da fertilidade sacra,
A água só faz acariciar eternamente.

Durma bem Cacau...

Chove...
Um guarda-chuva colorido,
As manchas de oncinha no vestido,
Derramas teu olhar caído
Sem fitar ninguém e, fim da noite, vais.

Vejo-te descer mais uma vez a rua
Absorta e indiferente, quase toda tua,
Sexo de aluguel, uma aventura,
Meu desejo de que estivesses toda nua,
A morna carícia afável que tortura.

Sigo-te a rodopiar no vento,
Por um instante, um estremecimento
Quase isento de mim em minha lama.
E, insone, busco um sonhado alento
Nos teus braços de programa.

Chove...
O olhar absorto e distraído,
Vais embora num passo decidido.
Em minha solidão dou-me enfim por vencido
E a hora vaza-me em nascentes lacrimais.

31 de julho de 2008

À beira de mim

Estou diante do abismo como à beira da morte.
Um grão de consciência mantém o fio da navalha.
O bem e o mal estão face a face.
Escrevo. Palavras e mais palavras,
As lembranças correm num enxame diante dos olhos.
Quanto errei e ainda estou aqui de pé.
Quantas vezes fui vil sem me dar conta.

A vida repete-se em perdidas naus num mar trágico
E nada pode ser previsto nem mesmo as intenções.
Não hei de ter escolha, porque nada sei,
Mas tudo está em curso
E terei que deixar de ser quem sou entre deuses e demônios.
Este é o segredo: Viver é não ter onde atracar.

29 de julho de 2008

Certamente sem palavras

As palavras que eu não disse
E que relembro agora dolorosamente
Prestes a atravessar meu mundo
Numa amplidão abismal,
São o ruído de mim a esperar.

Quantas horas vazias sem parar
Quantos pensamentos a se enroscar
E nada que aplaque essa torrente.
Como uma estátua fria fico inerte,
Esses boatos a me cercar.

Eu saúdo a minha angústia:
Estou irremediavelmente vivo
E hei de me despir de mim para a travessia
Mas nem sei como se faz isto.
Certamente sem palavras.

Falso haicai

Madrugada quente,
De repente, uiva o cão...
É que estamos sós.

28 de julho de 2008

Diário 10

Não há como buscar a si próprio
Sem o ópio da memória,
História de ser como um rio
que não volta à mesma curva.
Ação turva de recordar,
Flui-se em movimento,
No intento elementar e fugidio
De fazer vida, ida no desafio
De esperar a morte.


Diário 10

Não há como buscar a si próprio
Sem o ópio da memória,
História de ser como um rio
que não volta à mesma curva.
Ação turva de recordar,
Flui-se em movimento,
No intento elementar e fugidio
De fazer vida, ida no desafio
De esperar a morte.


As folhas mortas

Piso palavras cuspidas a esmo nas calçadas,
As folhas mortas dos poemas
Caídas no inverno em meu coração...
Poesia agonizante, pó do caminho,
Dia a dia, tudo é tão igual.
Os rostos velados do quotidiano não revelam a nudez afável
E quente que deixaram de si sobre as camas visitadas
E perambulam indecifráveis mesmo quando ao espelho.
A lascívia de insinuantes versos noturnos de feridos amores
Desmancha-se ao sol como se nunca tivesse existido.
E eu vou pela rua coberta de estrofes abandonadas
A verter grossas lágrimas em minhas velhas faces.
É inverno em minha dilacerada alma.

Texto poético 07

Todos os dias olhando uma última vez para o espelho
a dizer “não tens razão”.
Todos os dias...
Todos os dias esperando
trens que vem como vermes mudos
sem dizer nomes ou itinerários,
guinchando obedientes nas plataformas.
Todos os dias voltando e esperando,
com o orgulho partido...
A casa é estranha,
o amor irreconhecível
e tudo sem lágrimas,
o espelho a dizer
“não espere por mais ninguém em vão”.
E agora... E todos os dias
Crianças correm pelos pátios de suas futuras memórias,
e as nuvens têm formas de tudo.
É só deitar no quintal e olhar para o céu...
E olhar
mesmo que uma última vez para o espelho da janela do metrô
sem razão, vazio e disperso,
viajando nos trens sem motivo melhor...
O céu não é o mesmo
e só há uma vaga idéia dos velhos quintais.
E tudo sem lágrimas,
o espelho a dizer “não espere por mais ninguém”
e estupidamente querer esperar...
Em vão!

Sem fim prático

Coração:
Mecanismo de relógio
Pulsar do corpo vivo,
Emoção.
Motor de amor e dor,
No sangue que conduz
A luz & a sombra na noite...
Nascer e morrer
Sem um fim prático.
Mecanismo de relógio:
Coração.

19 de julho de 2008

Rapunzel

Quem disse que da janela se vêem monstros medonhos?
E como posso saber sem olhar.
Daqui, o quente ninho em que me prendo,
Longe de tudo o que é belo e horrendo
Fico inerte e sem espanto a esperar
Como saber o quê, se não toco, provo ou sonho.


Imaginar-se no meio fio, na boca da rua
Não é estar lá. Como sentir se não saio e não pego
Tudo o que de longe é prazer e desejo,
A sonhar fantasmas que não vejo
O medo de perder o que renego
Como se ouvisse da janela os uivos da lua?

O jardim na encruzilhada

Daqui ao paraíso são instantes...
Vagamos num jardim de buscas encantadas,
Filósofos de mãos dadas a derrubar
Muros que construímos à noite, sonâmbulos.

Daqui ao inferno também é perto.
Tal qual riscar um fósforo num bar,
Perambular por trens suburbanos,
Acordar só diante do despertador.

Em qualquer lugar somos nômades de nós mesmos.
Imóveis viajantes do tempo vivendo somente a querer viver,
Não nos esqueçamos de que alçamos muros
E de que os muros hão de cair sempre.

16 de julho de 2008

Sem título

um poema de Mérci B. Louro


Tenho ânsia por carne
Quase crua, quente, sangrenta...
Em tresloucada antropofagia
Engulo-me vermelha
Para ter-me somente como fogo adocicado.
E assim permaneço:
Vivíssima, imoral, sedenta e, às vezes, letal!

Existir


Quero-me assim sem fronteira.
Navegar em meu derramado mar,
Redemoinhos de água e de tempo,
Olhares e carícias entre galáxias.

Quero o vôo mais alto,
A vertigem, o abismo,
A queda e os anjos a olhar,
Surpresos, boquiabertos...

Cair no mar, o mergulho,
Novos amores, a volta do parafuso,
O uso, as delícias, os interstícios,
Os vícios que me põe a saltar sobre as ondas.

Quero ser pó de mundos, lama,
Novas crenças para eu chafurdar.
Montarei cavalos de espuma,
Para além do que sou.

Quero-me enfim comigo,
Perdida nau vagante, fantasma,
Olhar desatinado pelo universo,
Sem saber para onde.

É assim que me quero: ponto,
Dor em vagas de estrelas.
Navegar a ser
Mesmo se inútil for.

12 de julho de 2008

Caramujos

A chave;
Abrir a porta,
deixar a mala,
encher a sala
de vazios.

A casa;
comprar pão,
comer pão com manteiga,
invadir a cozinha
fazer café.

A cabeça;
abrir a sala,
fechar a porta,
carregar a casa
dentro da mala.

A vida;
entrar no vazio,
tomar café,
partir com a chave
consigo.

Consigo,
não consigo,
comigo.

Certezas

Enquanto vejo o farfalhar de tua saia de crepe,
Mais uma vez um navio passa lento no canal.
Mais uma vez a lua cresce mudando de fase.
Mais uma vez uma guerra agita a aldeia.
Penso no navio saindo do porto, tão cotidiano e tão óbvio.
Mais uma vez, homens riem de copo na mão.
Mais uma vez, um carro buzina inutilmente.
Olho o mar e imagino seus itinerários,
e tu voltas à mesa mais uma vez.
De quando em quando, flutuo sobre o mundo
e desmancho-me.
A morte será a única certeza...

Procedimentos

Para que a tarde outonal escorregue no sol,
Pintando de laranja meu abre-alma,
Preciso antes:
- Ouvir chorar pianos e peixes,
- Aprender a tocar vida num instrumento,
- Desaprender escritórios,
- Freqüentar a rir mictórios pós-cerveja,
- Sentir ternura nas mãos de um córrego,
- Derramar estrelas nos olhos de uma mulher
- Varar com os sonhos a intimidade do mundo
- E fazer doer poesia no branco do papel...

10 de julho de 2008

Esses moços...

Cansada
quedo-me neste trem,
estação após estação,
a observar...
De repente,
são os moços,
esses moços, lindos moços,
Tantos moços lindos em volta de mim...
Um ouve música, fones de ouvido,
tristes pálpebras caídas na distância do olhar,
jovem arlequim que já não brinca.
Ao seu lado, assustado outro olha sem parar
para o homem louro à sua frente,
aquele que marca com o pé sua impaciência pela demora.
Entram quatro belos e ruidosos rapazes de terno,
a dizer bobagens e pequenas indecências
e então me percebo, nenhuma mulher por perto...
A que está ao meu lado não conta.
Dorme exausta e escondida...
E eu.
Eu? Será que conto?
Serei eu visível?
Ou serei eu tão feia assim? Bem sei que não!
Eles a falar de mim, bem ou mal, mas de mim...
Ou nem me sabem,
tão comum filha do esquecimento...
Só esses moços tão bonitos...
E nem um simples...
Ah! Houve sim... Um olhar!
É do “tristes pálpebras caídas”!
E agora está a desviar...
Não! Olha para mim...
Brinca vai... Flerta comigo...
Serei tão invisível assim?
Cansada quedo neste trem,
Estação após estação, a observar...
E esses moços, lindos moços,
Tantos moços lindos em mim...

8 de julho de 2008

Declaração

para Mérci

Esta é a mulher que eu amo...
Não é minha...
E acho que nunca será...
Essa mulher de olhar divergente,
Presa a seu umbigo num mundo que não é meu...
Eu cheguei tarde demais...
Meu amável vampiro!
Meu acre bem,
Meu doce mal...

Linda mulher,
Você está num sonho meu.
Como um cristal que brilha,
Luz de seus olhos.
E você sorri.
Está nua e bela!
Amo meu sonho de mulher...
Você estará sempre assim
Nesse céu de minhas pálpebras
A pairar tal estrela da tarde
Em meu coração entregue.

2 de julho de 2008

Apenas o grito do amor

Diga-me, velho fauno,
valerá a pena
esse estranho amor entre seres tão longínquos?
Aonde pode levar um desejo
tão pontual,
um amor mítico entre seres
tão distintos?

Teus pés de carneiro,
teu rosto animal
escondem tua amável gentileza
na figura bruta
de um delicado servo de Dioniso
Que não faz senão amar, amar, amar,
Desmesuradamente...

Mas e ela,
essa ninfa prisioneira do destino?
Não estaria sedenta apenas dos cuidados teus?
Tão bela,
não estaria à espreita a predadora para libertar-se
E viver de ti, alimentar-se de ti,
de teu doce coração?

Até quando,
entristecido deus da natureza livre?
Até quando te quedarás
voluntariamente entregue
em ser tão leal a essa estranha donzela?
Nada dizes por trás de teu sorriso largo
e melancólico?

“Antes assim livre e senhor de mim,
aquele que prova da entrega!
Nunca a estúpida sina de Apolo
a perder eternamente
todas as suas Dafnes
metamorfoseadas em mudas árvores
de abandono”.

Ai, velho rei a delirar...
Feliz da ninfa por seres
esse deus assim!
E o velho fauno entregou-se à paixão
mais uma vez
Num último grito de seu sensitivo
amor...

29 de junho de 2008

O orgulho de Prometeu

Entre mendigos deserdados,
As fogueiras em latas de lixo,
Na poça mais suja vejo-te. Que dizes agora,
Castigado orgulho de Prometeu?

"Espelho, espelho meu, não me abandones
Peço-te que mesmo em farrapos,
Fiapos de mim, és a única janela,
A visão de meus seculares desejos".

Mesmo com rugas nos olhos, a vontade,
Fantasma em véus e trapos
Andando seminua em minha pele,
É o sopro e a chama que me deu o deus titã.

O corpo de Prometeu traz a chaga mais velha
E é dela, do castigo e da dor, que se servem os deuses,
É nela que bebem do nosso amor rebelde.
O sangue dos homens brilha entre iras e concessões.

O sagrado também está nas poças mais sujas
E nas chamas que dançam nas fogueiras dos miseráveis.
Orgulho castigado, imagem acorrentada,
Não meu espelho, não me abandones.

28 de junho de 2008

Caravana, Eras de um Sonho

Vivo de meu mar,
Rugido de velas e deuses,
Águas de argonautas
E leviatãs imaginários.
Meu barco navega nos olhos do tempo
De pálpebra a pálpebra,
Num poente lacrimal a fechar o dia.
Noites oníricas, adormeço
Em meu olhar
Oceano.

A Deusa de Mármore

O escultor cinzelou levemente
Uma última vez...
Os olhos vítreos pousou na obra
E ao “vê-la” disse enfim:
Tenho sede.

E ela, olhos mortos de pedra,
Boca lânguida de branco mármore,
Continuou muda e fria diante dele.
Ele suplicou com os pés na lama do desejo:
Sede de ti.

E ela alojou secretamente suas queixas
Enquanto ele bebia das pesadas lágrimas
A cair pelas suas faces empoeiradas
Num indizível sulco úmido
De triste Narciso.

19 de junho de 2008

Caçada

Através das muralhas de ouro e lágrimas,
Profusão ininterrupta de verbos.

Coroas crivadas de emoções ocultas aos olhos comuns

E uma canção entoada no espaço...

Olhos atentos pelas frestas
Buscando, quem sabe, a realidade do outro lado
Almas famintas consomem interrogações
Embebedam-se de respostas que jamais encontraram.

Poesias atravessam as páginas como relâmpagos
E quase posso tocá-las.
Sinto-lhes o cheiro e o sabor
E me basta saber que existem...

Lanço a rede sem esperanças
“Poesias são ligeiras como o que!”
E num repente sinto-me (outrora caçadora)
Como a mais servil prisioneira...

17 de junho de 2008

O Amor da Triste Figura

Se de repente teu sangue vier
Arder em mim como em tuas veias,
Se tua língua colar estrelas em meu céu da boca,
Se tuas mãos enfim forem asas,
Dá-me então, Dulcinéia esse teu beijo
Porque é este o desejo terno
Que deve ficar em mim
O desejo que a morte levará com ela.
Serei renascido em tua boca de mulher,
Abraçado em teus galhos-asas
Iluminado por teus olhos.
E assim mergulharei entre mundos
Unido a ti nesse instante único,
A passagem de teu beijo eterno.

Poema Sangrado

Falo de ti poema sangrado por vozes sussurradas de mim.
Falo do que ouço às vezes por um fio de som,
Meus teoremas, meus presságios, meus dilemas.
Ouço a alma surrada de desencantos e encolho-me.
Que dizes maltratado filho de Prometeu,
A desmedida fonte castigada que aos deuses desobedeceu?
Os gemidos nada revelam, mas não aplacam a dor.
Não há mais soluções para o orgulho da raça
E o que faço é relembrar o sonho perdido.
Sangra palavra minha sem rumo,
Que em ti se esvai a vida contida em meus pesares,
Sangra. Não há remédio para essa ferida,
Só eu a envelhecer, meu encontro em minha procura.

O Penar da Alma


Procuro teu rosto entalhado em meus segredos.
O que me dizes alma outrora presa em teus grilhões,
O que podes dizer agora diante do vazio?
O que há para ser ainda num mundo corroído,
Derrota dos homens a se destruir ?
Amo tua liberdade faminta mas pago um alto preço.
Quem sou eu entre os véus do corpo que envelhece,
Essa puída trama que esgarçará inútil?
Mesmo assim consinto, alma, nada mais me cabe.
Amo e assim terei que ser custe o que custe.
Sei o que fazes; procuras. Pois que assim seja então.

13 de junho de 2008

Prece para aconchegar minha filha

para Carolina

Mãe eterna salve minha menina,
Sua filha altiva e merecedora,
A que floresceu toda, mulher por inteiro,
E hoje encanta este velho fauno
Seguidor da Deusa e de Dioniso,
O eterno amor divino.
Aconchegue, Senhora essa alma feminina
Que obstinada procura nas suas entrelinhas.
Que descobriu nas faces de sua lua o que é amar
E feliz chora plena de sangue, saliva e desejo.
Amo essa minha filha e por ela peço.
Dê-lhe força mãe, pois é ela
Sua mais amável e terna herdeira,
A justa forma cristalina de ser mulher.

11 de junho de 2008

Ímpeto II

Neste entardecer quase em brasa
Fui tomada por um indesejável
Silêncio de línguas repousando,
Letras descansando sob a ponta do lápis
E pensamentos, que de tanto acalanto,
Adormeceram...

Na varanda,
Sem outra opção a não ser permanecer,
Deparo-me com intervalos, pausas, ausências.
Consumo-os com uma voracidade toda humana
De ser e estar em cada coisa.

E sinto no silêncio incômodo
Uma presença quase sagrada
Poesia me espreitando,
Inusitada, límpida, divina,
Por entre as cortinas entreabertas
E rimas que nunca uso.

Então observo...
Um andar vagaroso, quase próximo...
Uma procissão de letras em palavras descrentes
E de repente vejo
(Com olhos profundos por se saberem urgentes)
Um sorriso no canto do lápis...

Tudo o que pude

Dos momentos incertos onde dizes 'não'
à praxe dos dias em que te calas, ausente,
aguardo que despejes um 'talvez' oblíquo
no instante eterno onde espero um 'Sim'

Ao tilintar das esmolas dos teus gotejos
e à glória abençoada dos teus lampejos
dediquei desnudo minhas noites em claro
e sonhei, voraz, cada um dos nossos dias

Apontaste-me a praia mas rumaste ao ermo
Diabos ao mangue! O que procuro está aqui,
no sal da tua boca, na maresia de tuas coxas:
Eis aí Meu Oceano, a orla de meus desejos!

Recuso-me a ouvir tua sinfonia morosa,
Tuas ondas contidas a bater nos corais
Presas aos escolhos de tuas 'escolhas'
e às carcaças roídas dos velhos naufrágios

Na taumaturgia de logro de teus desesperos
evocas em vão a ressureição dos mortos
e despertas não mais que rotos fantasmas...
Por que não a mim, que adormeço em ti?


Como crer-te, Impiedosa?


Cala-te por suspiros, a convicção da tua voz perece,
refuga, pois vem de teus Deveres e não de Quereres.
Tuas gotas salobras molham os dentes de plástico
com os quais dás Adeus e sorris, sem crer

Por que não tiraste o Grão do sepulcro
e plantaste no solo quente desse abraço?
Ignoras? Semente não brota em concreto
nem as Mudas, tuas, de tua dor viverão.

Pois entrega-te ao embaraço de teus dias
à geada eterna de tuas noites infindas
Deita-te inerte sobre o mármore frio...
Mas o Amor não blasfemeis, tu e teu medo da vida.

10 de junho de 2008

A face 1 - Recorrência

Encantam-me seus contrastes, todos...


Um olhar, um semblante, uma mágica qualquer
Capaz de um instante transformar em arte,
um sonho em slide e rotinas em tintas.
Ela, pigmento oscilante, furta-cor, furta-paz.

Comigo há décadas, num vago silêncio que sugere sem dizer.
Suas reticências, suas incertas origens e suas incógnitas

traduzem impulsos, desejos e posse indistinta,
magnetos da fome e do ferro em meu sangue.

Tal criança faminta, tateio no escuro
pelo mamilo de seus trejeitos,
pela urgência de suas dúvidas
e pela mácula em seus lençóis.

Encontro-a em rostos e caras furtivas
e, por um momento, em ti quase creio.
Desvelo, incinero e encontro a mim mesmo,
a reter imagens num espelho (diante do qual ninguém há).

Quero. Quero e respeito seu estalar de dedos.
Eu, soldado ilhado num bunker qualquer,

onde notícias da guerra demoram a chegar,
obedeço sua ordem sem jamais ouvi-la.

Sonâmbulo a postos:
Deitado sobre o telégrafo,
balbucio seu nome sem sílabas
e adormeço.

De onde está, sente meus dedos ávidos?
Adoçam-te? Roçam-te? Eriçam-te?
Dizem-te de mim mais do que eu?

Ouve-se nós? Houve nós? Haverá?

Diga. Qualquer coisa, mas diga.