29 de março de 2008

Noturno 05

Onde quer que esteja a lua

entre as paredes doentias dos edifícios,

Estarei a buscar sua face,

ausente deusa suja de prata e cobre.

Busco vê-la como que surpreso

mesmo sabendo-a lá,

o olhar enfim recompensado.

Curvo-me a seguí-la repetindo velhas ladainhas

sem respostas nos ecos da noite.

Não sei dos gritos lancinantes ou dos gemidos de prazer

pelos becos da escuridão. Não os ouço.

Cães vagabundos marcam seus passos

a fugir dos homens à sua volta.

Minotauros caçam presas pedintes,

jovens Teseus nas entranhas dos labirintos urbanos.

Prostitutas fazem ponto à espera de solitários falos

na sombra de seus desejos.

Mas eu entregue ao meu olhar sedento,

transeunte indiferente e arredio,

Sigo alheio e vadio a procurar

a fonte da fria luz que me prende a mim.

Lua nova, lua velha, lua cheia, lua prenhe,

lua fêmea, resplandecente deusa lua,

Onde quer que esteja, nua,

objeto assim de orações e amores, evocações e enganos,

Estarei nela à minha procura, o lado sagrado da solidão.

28 de março de 2008

INVENTÁRIO

(Para Denis; depois de nossas últimas conversas em festas)



Em muitos anos minhas entranhas
envelheceram mais que meus cabelos.
Tive casa, tive amores, estive quase onde queria.
A boa estrada persegui nas esquinas da noite.
Ao ir às ruas solitárias da madrugada procurei sentir,
passo a passo, que fazia eu de mim mas não me convenci.
Muitos luares eu vi.
Fixei-me em estrelas na solidão,
mas não me permiti ir além de me deslumbrar.
O sol nasceu muitas vezes em meu titubear cansado
e achei que tinha alguma resposta.
Deitei-me exausto de tantos enganos. A vida deixa seu peso.
De sombra em sombra eu voei manhã após manhã e renasci.
Mas a cada noite voltava andarilho.
Algo eu aprendi: estou só diante de tudo.
E tudo é tão incrível!
Sou um palhaço imaginador para não sucumbir.
O encanto está em todas as paixões e melancolias.
As bênçãos também!
Não me ocupo em entender, pois nada há para entender.
O amor e a alma estarão sempre no seu próprio encalço
e não se tem volta.
Mesmo quando ficava sem dormir de tanto pensar,
não conciliava o espírito.
A alma importunava querendo penar.
Não tenho medo da morte
mas a paz pertence a quem tem fé cega.
Eu não a consigo pois sempre quis ver além, ficar atento.
E o amor acontece quando estamos distraídos...
Plantei-me vento nos amigos e eles em mim.
Escrevi alguma poesia como um vício
e a soprei sobre alguns campos nus.
No mais vou vivendo com as palavras que lancei
e as tempestades que colhi.

27 de março de 2008

Poemeu Quase Erótico

Ah, se você deixasse às vezes acontecer

Uma roçadela no pescoço

E, com os ossos descuidados,

Os olhos a fugir do espelho,

Abrisse sua couraça de escaravelho

E cedesse.

E se eu, abuso erótico e sem rodeios,

Sugando o bico de seu seio,

Acendesse, lúdico, o desejo e você soltasse

Sôfrega apenas um leve e sutil gemido...

E se na boca entreaberta,

De língua, um longo beijo eu desse

E você pedisse sem dizer, franzindo a testa,

Com uma piscada de seus olhos

E eu consentisse, uma lambida em sua ilha,

E nela eu me metesse e você gritasse

E mil salamandras em brasa percorressem

Suas faces e suas coxas, e aí eu... Ai... E se...

Ah se você deixasse!

O amor que sinto por ti

para Sissi

O amor que sinto por ti
Já não sei bem se é amor.
Desfiei tantas vezes a trama dessa palavra
Que me perdi exausto em desencontros.

Raramente canto o amor que tenho por ti.
Talvez por descuido ou por medo da mesmice!
Vi tanto sobre o amor, belos poemas, contos, cinema
Que falar de amor é quase repetir de si as ladainhas.

Mas hoje pensei em ti e nesse amor que tenho
Assim como um desenho que me foge
Urdido num tecido ralo de traços e palavras
Que confundem os olhos a acariciar o papel.

O amor que sinto por ti
Por isso tudo é amor, eu acho,
E desfaço em mim orgulho e medo
De sentir que te amo.

26 de março de 2008

noturno 03

Chove em toda a área cinza.

Noturna garoa reluz cintilante


Caindo nos cabelos cor de terra.


O pára-brisa cheio de brilhos,


Os trilhos de água no asfalto,


Todas as portas estão fechadas.


Ao passar das horas escorregadias,


Amarelos reflexos entre os muros e eu,


A madrugada dói como uma carícia.


Previsão do tempo: melancolicamente úmido,


Chuva fina de pensamentos.

A água,

São micro-diamantes no olhar.

Amor meu

Fica comigo, amor, agora, fica.

Roça meus seios com teus lábios úmidos,

Acaricia minhas pernas entreabertas

E desce teus dedos vertiginosos dentro de mim.

Fica,

Beija-me a boca pedinte, morde-me

E naufraga teu barco em meu oceano,

Proa a pique em meu redemoinho.

Vem, amor, agora,

Crava teu ferrão em minha aranha

E envenena-me de prazer

Até que me doa de medo e felicidade teu gozar.

Aqui em mim,

Explode meu desejo, meu olhar em teu rosto,

Minhas mãos em teu dorso, minha língua em tua boca,

Até eu gritar, desfalecer, perder-me de ti e sermos um.

Vem amor e fica,

Exausto junto a mim, sem pensar em nada

Mesmo porque depois a solidão virá de qualquer jeito

Corroer-me a alma e o coração sem ti.

25 de março de 2008

Do pó ao pó

Num corredor de pedras,
Virei à esquerda e cheguei a uma porta.
Divindades de todos os tempos olhavam
E uma deusa amante entregou-me um sonho.
“Toma e segue teu eco.”
A felicidade é uma centelha de memória na retina:
Apaga-se.
Comi com velhos amigos e bebi nosso vinho.
O jardim onde dois eram um chegou ao seu fim.
Quantos rostos de pedra sustentarão meu mundo?
Um espectro veio só olhar minha face.
Um velho homem de barbas brancas disse estar a meu lado
E então uma feiticeira com cabeça de antílope, revelou-me:
“Saia e viva. Não se prenda qual velha máscara na parede”.
E eu me percebi chorando. Ah, quantas horas hei de viver,
Prisioneiro!
Divindades olhavam como se já me soubessem
E a dama pousou sua mão leve e firme em meu ombro nu.
Segui meu caminho, a alma e o espírito e o esquecimento.
Como um peixe fui procurar minha nascente. Estava só!
Cego e assustado com a luz, órfão da água púrpura e quente,
Num corredor, vinte passos, vinte vidas e sem lembranças,
Estava vivo e com medo da morte. Minha mãe tomou-me nos braços:
“Amo-o, não o amo. Quero-o e não quero...”
E vivi.
Andei ereto, corri, aprendi.
No mais, amei transcenditivamente:
Novos amigos, dez paixões reconhecidas,
Quase todas as mulheres e muitos bichos.
Alguma inveja tive e nenhum indício de milagres,
Salvo a sacralidade de tudo a minha volta.
Fui rei e fui ninguém. Instantaneamente fui feliz.
A dor, mesmo quando sutil, foi a ladainha de minha alma.
E sonhei.
Incontáveis vezes sucumbi
E a aridez dos homens desencantou meus passos.
Andei enlouquecido e parindo idéias. Escrevi poesia.
Quando eremita, não deixei de procurar
Nem mesmo em meu deserto.
Envelheci de uma hora para outra e quase desisti.
E então uma terna e eterna criança
Surgiu-me de dentro e um dia sorriu:
“Vem”!
A memória espocava centelhas em minha retina.
Só fui ter a mim de volta quando morri.

contra-senso

Eu te AMO,

Eu te quero muito mais

E acabo dizendo aflita

“Não, não vas ainda”.

E tu assim mesmo vais.

E, por não dizeres que me amas

Fico só com minha dor infinda.

Porque te quero,

Eu desejo sem ter paz

Que também me queiras.

Por não me olhares,

Nos olhos, quando sais,

Perco-te, e fico aqui na minha lama

A te odiar em meus penares.

E penso convicta

Que já não te quero,

Quase tenho certeza

Que já não te amo tanto assim...

E sozinha e triste espero,

O meu coração ardendo em chamas,

Que também saias de mim.

Coração Zagreu

Coração, coração meu,

Terra, veneno e cio,

Sangue derramado

Que pertences aos olhares vadios,

Aos medos cotidianos,

Às longas noites de frio,

Aos esquecimentos outonais,

Dança e ama, coração zagreu

Entrega-te sem desdém

Às bocas entreabertas,

Às cochas descobertas,

A todas as ofertas

A todos os apegos

A qualquer um que te dê um vintém,

Ao barqueiro da margem derradeira

Mas não a mim que me renego,

Não a mim, fonte e ninguém.

24 de março de 2008

Prece a Inana

Abre o teu reino, mãe,
Todos aqueles brilhos e chocalhos
Em teus braços e pernas...
A velha raça do amor e da arte,
Abre-o para tua renegada filha mais uma vez!

Em minha via estou a perguntar
Onde perdi a criança, onde me tolhi,
Onde escondo a mulher,
Essa força que não me trai e que dissimulei,
Essa força que neguei, diante do mundo de meu pai.

Quero-me inteira daqui para frente,
O poder da fêmea, a leoa, a águia,
A que gera, a que contém e cria,
A Mulher Absoluta, a perpetuação da Deusa.
Quero ser livre para gritar teu nome!

Abre o reino, Mãe Cósmica, eu imploro,
Todas as cores das mais lindas palavras femininas:
Benevolência, Pureza, Coragem, Honestidade, Compaixão,
Generosidade, Dignidade, Alteridade, Solidariedade...
Abre o reino para tua renascida filha mais uma vez!

Meu Amante

Abraça-me!

Não, não me abraces. Beija-me!

Teus olhos em mim,

Lamba meu sexo,

Língua vertiginosa em auroras boreais

E esse nó na garganta que me dói!

Prende-me, solta-me,

Desvenda meus presságios.

Choro, choras, Abraça-me!

Amo-te. Deixa-me!

Não, não me deixes.

Agora não, Amanhã talvez queira saber,

Agora não.

Hoje apenas abraça-me

Como se me amasses, Única.

• Notas de Corrimão

ZAGREU
Do grego Dzagreús, é um dos nomes pelos quais é chamado o deus do êxtase, da entrega à vida e do entusiasmo no mundo mediterrâneo e particularmente na ilha de Creta. Talvez o deus designe uma divindade que, por força de analogias de seu culto com o de Dioniso, com este se tenha confundido em época difícil de se precisar. Tendo-se tornado um dos nomes do Dioníso místico e permanecido religiosamente mais fiel ao Dioniso arcáico do antigo mundo insular, jamais se assimilou de todo ao "segundo Dioniso", que era o filho de Sêmele.

Possivelmente de origem ocidental, é chamado Zagreu sobretudo na Ásia Menor e em Creta. E se Zagreu, como epíteto, raramente aparece em textos da época clássica, seu nome já é atestado desde o século VI A.C. Eurípedes o menciona entre as divindades cultuadas por confrarias religiosas que ele supõe terem existido desde a época de Minos e cujos membros formam o coro de sua tragédia Os Cretenses. Esse Grande Caçador é um caçador noturno: o coro da tragédia citada dá-lhe o epíteto de nyktipólos, "noctívago", o mesmo que empregara Heráclito para designar os seguidores de Dioniso. A menção da omofagia, a alusão ao orgiasmo e ao culto da Grande Mãe e a qualificação de boieiro permitem adiantar que Eurípedes situava Zagreu numa atmosfera religiosa intencionalmente dionisíaca. Fundindo os dois, os Órficos hão de fazer de Zagreu o primeiro Dioniso.

O Dioniso menino.









• Índice (em construção)


Mario Ferrari
▼ NOTURNOS
Título
Título

▼ POEMEUS
Título
Título


Edmea Thea Belladonna
▼ POESIA NO FEMININO
Título
Título


Vanessa Marques
▼ diVERSOS
Título
Título


De Marchi
▼ CONFESSIO
A Face 1 - Recorrência
Tudo o que pude

• Prefácio

É bom que se diga: esta página nasceu às 03h45 do dia 24 de março de 2008. Sob fogo, água e ar.
As datas são mais que areia a correr por funis. São símbolos. Como tudo o que importa.
Uma página, substantivo e substância feminina. Porta-voz da alma de uns poucos anônimos, a viver da memória de um tempo sem tempo, a reconhecer em meio à multidão aqueles que nascem sob a chaga da voracidade. A caçar soslaios, nuances e sutis displicências de uma Rainha qualquer, posto que Rainha.
A escrever.

Não há pretensão além do espasmo. Nunca houve. É como viver: o coração pulsa e despulsa com a mesma audácia de seu início e o mesmo espanto de seu fim. Um ponto final, um novo parágrafo, senão cinzéis em mãos de ver e dizer.

Nós também somos símbolos. Também somos cinzéis. Nas mãos de quem, para que saber? Se o enlevo do toque, a umidade das Mãos e o calor da pele são todo o Norte de que precisamos, nomes não importam.
Ainda assim, por pura diletância, digamos.
Mario Ferrari, amigo, professor e poeta, merecia um espaço para dizer assim como merecem a boa cama os mendigos e os amantes. Para trazer consigo o cheiro e a letra dos pequenos órfãos que em sua orfandade adotou. Para fazer-se gregário até no mais solitário dos meios. Para despir a inquieta verve do dia-a-dia, as pequenas surpresas do olhar de criança, a promiscuidade dos sentidos e a esperança dos condenados.

Ouvir seu testemunho, suas Palomas e falanges de um só querubim, já fazia-se urgente assim como urge a boca do espírito pela calidez da alma que teima em deixar.

Vai, coração zagreu!