30 de setembro de 2008

Simulacros

Chovem garrafas,
bebem goles mágicos, puro malte,
espuma loira da solidão rindo alto, monstros gentis
encurralando amigos velhos. Olhar triste de bicho ruminante
e boca sorrindo de batom, reboladança a bunda no som
do sábado ávido, copo de cerveja platinum blond
e muitas horas, mesas de mentiras e mijadas públicas depois,
o cheiro da madrugada despe máscaras
do corpo indecifrável e completamente só.
No fim da noite nada haverá senão
estilhaços, ressacas e maresias.
Amanhece o dia...

29 de setembro de 2008

Nós...

Ouço uma canção, mas é irreconhecível.
Vozes de mulheres e telefones insistentes
Em mim no ar da tarde.
Pensamento:
Onde estão?
Uma imagem:
Lembrei-me de você Maso,
Na porta de um longínquo cemitério,
Você chora, indefeso.
“Quantos de nós? Quantos ainda terão de ir?”
Todos, eu sei.
Nós que aqui estamos por voz esperamos.
Estamos?
E você também se foi...
Passa ruidoso um carrinho de limpeza pelo corredor.
Toca um bip quase imperceptível.
Em mim um tédio sem remédio...
Sentimento:
Onde estão?
Será que “estão”, será que esperam?
Entram aqui duas mulheres...
Oi, vocês. Vieram me varrer, é?
Uma passagem:
Você tinha planejado tudo, Lúcio,
Mas a vida beira a inutilidade de propósitos
E você não esperava.
Tinha medo de sufocar.
Eu também tenho, penso.
Nós aqui de fora temos medo dessa hora.
Amém! Amém?
E perdi você também...
Meu coração ruidoso em minhas veias,
Bombeia-me teimoso.
Um fim em si próprio meu ópio...
Tormento:
Onde será que estão?
Uma viagem:
Perdi-me de vocês,
Zé Ary,Angelina, Nelson, Vítor, Maso,
João, Lucio, Ana, Luciano, Adilson...
Na hora morta desta tarde de recintos fechados
Desmorono, impreciso.
“Quantos de nós?"
E quando nada mais serei?
Nós que aqui estamos por voz esperamos.
Esperam?
Eu também irei...

O Chamado

Febre nos teus olhos.
Os uivos dos lobos
Chamam no vento.
A voz é um lamento
Atravessando séculos.
Loba-mulher,
Duro é o caminho
Do resgate:
Viver inteira
Para além de todas as espadas.
Lobas não fazem guerra,
Fazem vida.

Teu Nome

Quando te conheci
Foi um enxame de palavras ao vento.
Percorri teu corpo até penetrar em tua carne macia.
Quase sufoquei.
Depois, certo dia,
Tuas sobrancelhas emendaram uma dura moldura
Para teu olhar distante.
Vaguei pelos desertos de tua pele a me perder.
Perscrutei teu rosto tantas vezes que me acabou estranho.
Sondei teus lábios em vão.
E então como revoada de mil pássaros
Saí de mim a gritar teu nome.

20 de setembro de 2008

uma última litania

E repetirei as palavras
Tantas e tantas vezes!
Vermelho vivo, incandescente,
Brilho da tragédia,
O fim:
Tristeza intransponível,
Não há mais tempo!
Toda a consciência a tornar-se inútil...
E repetirei as palavras
De novo,
E de novo,
Mas nada mais significarão:

Compaixão,
Generosidade,
Dignidade,
Honestidade,
Amabilidade...

Depois,
Depois será o esquecimento...

Bebe-me!
Bebe-me!

Há uma bandeira
Estendida sobre a miséria
Numa carroça de catador de rua...
Há uma nua e alva nuca de mulher
Adormecida à minha frente...
Tristeza insondável do fim:
Não há mais tempo!
Insensatos pesares,
Poder & Glória,
E o tempo
A queimar o espaço,
Acontecer...


Últimos dias de paupéria:
Num imenso depósito de lixo,
Deslizo pelos soluços do desespero...
É o brilho cego dos olhos
Que querem
Crer!
Mas é inútil...
É tarde,
Tampo os ouvidos!
Silêncio de coração,
Meu sangue corre,

Dorme, ouço...

Não! Perco-me no caminho...
Ela olha-me nos olhos:

Bebe-me...

Estou no eixo do mundo
Relembro as palavras
Que hei de repetir
Tantas e tantas vezes...
E aquela mulher fita-me nos olhos

Dorme, dorme!

E está sorrindo:

Bebe-me, bebe-me...

E mais nada...
Aquela nuca de mulher,
Fria & nua é como uma tempestade.
Estou no tempo, encharcado de segundos,
Acima dos reinos, acima de meu caminho...
Explode a eternidade: uma fotografia,
Uma imensa fotografia!
Tudo é vermelho,
Brilho da tragédia
E pergunto onde estás?


Velhos amigos somos eu e essa dama!
Abrir esse reino, uma porta!
E eu a dizer as tais palavras
De novo,
De novo:

Compaixão,
Generosidade,
Dignidade,
Honestidade,
Amabilidade

Mas não há mais tempo...
Isto é o fim!
Depois, o esquecimento...
O corpo do deus que morre
Brilha tal qual uma chama imensa,
Mágica:

Este é meu sangue
Bebe-me, bebe-me
Ama-me...

O bravo homem se levanta
Num quarto
Onde revê acordado um sonho
De amor!
As palavras no feminino
A soar
Na sua insônia...
E ele a tentar dizer outras coisas,

Claridade,
Bravura,
Honra...


Não, não, não,
Não, não!


Nada virá senão um grande esquecimento,
As palavras nada significarão!
E aquela linda mulher que agora esconde a face
É a derradeira!
E eu prestes a repetir as palavras...
Não, ainda não!

Cede,
Cede...
Nem que seja uma grama de alma,
Nem que seja um instante, fragmento,
Toda a eternidade!

Ceder, diz ela...
Aquela nuca vulnerável de mulher
É a minha também.
Ergue-se como um rochedo lunar esquálido,
Nu sob a luz deserta do sol-lâmina
A queimar,
A cortar...
Ondula a bandeira entre os latões de lixo em brasa.
Nada perguntarei, pois tudo vejo.
Não há mais respostas...

Ah divino fruto do sagrado ventre, repete teu êxtase
Nos corpos arrebatados das mulheres que amei!

Só a mais antiga litania,

tempo,
terra é...
tempo,
vento é...
tempo,
fogo é...
tempo,
água é...

tempo, tempo

tempo...


O filho e amante da antiga deusa viva
Foi morto enfim
E ressuscitou...

ressuscita então

diz ela, rindo!

este é meu corpo, este é meu sangue

Bebe-me penso eu...
Aqui, estamos nós, outra vez, e outra...
A última comunhão, o derradeiro encontro:
Carne dos inocentes,
Um Deus tantas e tantas vezes assassinado!

Come-me, bebe-me e estarei em ti.

Nada a dizer, não há respostas
Só uma voz amável a balbuciar eternamente

Onde quer que esteja tua face,
Estarei contigo...

E o espírito assim tragado, sacrifício,
na tragédia, renasce...
Nova bandeira sem significados
Há de tremular sobre as estradas,
meus caminhos...
E diz ele:

Mãe perdoa-os porque sabem sim o que fizeram...
Pune os infames e salva-os de si!
Ah, maior amor dos mundos, abre teu reino, mãe!
Pune os homens com o ardor do teu carinho!

A eternidade explode em miríades de raios
Luz em negro nada, imenso clarão,
A última imagem...

Dorme, dorme...


E eu a dizer as últimas palavras:

Compaixão,
Generosidade,
Dignidade,
Honestidade,
Amabilidade

E será outro tempo!
Amar o deus do sacrifício sem matá-lo,
Redenção do esquecimento,
Eu & tu, minha dama de branco...
E o deus levantar-se-á, filho e amante
Da eterna deusa!

bebe-me, bebe-me e serei em ti!
Serei o que ama esse ser perverso que sempre foste,
Serei o que retorna e retorna e retorna...
Mereces-me? E isso importa?
Bebe-me!
Entre tuas blasfêmias estarei contigo!
Onde recomeçares estarei contigo!
Onde pousares inocente tua mão estarei contigo!
Onde não pensares mais estarei contigo!

Essa é a tragédia!
De novo, e de novo,

Compaixão,
Generosidade,
Dignidade,
Honestidade,
Amabilidade,
Paz
E a Morte...

Onde recomeçares estarei contigo!
Onde pousares inocente tua mão estarei contigo!
Onde viveres estarei contigo!
Onde não pensares mais estarei contigo!
Onde não fores mais estarás em mim!

18 de setembro de 2008

Amáveis espectros

São fantasmas esses seres mal tecidos,
Estendidos no inferno como roupas no varal,
Máscaras estranhas carregando o antigo fardo da semelhança,
Figuras nostálgicas olhando através dos espelhos
Quase imóveis como reflexos em poças d’água.

Quadros de um filme sem cortes na fábula sem moral,
A poesia sem poetas, os sonhos sem censura,
São anjos rotos velados pelo medo de ver na hora de fechar os olhos,
O reverso das moedas, o outro jeito, não premeditado de dar o passo.

Doces sombras emudecidas pela covardia do homem vil,
Agarrado a seu obscuro anonimato, pretensamente invulnerável,
Esses elfos esperam pacientemente o abrir das portas
Vagando amáveis e obstinados nos jardins de todos os paraísos perdidos.

13 de setembro de 2008

Onde deixo meu amor

Os seios macios e quentes da pajem que me carregava ao colo
Enquanto eu pequeno via deslumbrado as estrelas,

O primeiro beijo, dado em Marli
meu tortuoso caso de amor colegial,

Os delicados dedos de Blanche
Que me ensinava a tocar piano ,

O olhar sonolento da aluna adolescente
Que fazia a prova bimestral,

As pernas da bailarina bem diante de mim
Dançando etérea em meus olhos,

A boca da enfermeira da madrugada no hospital
A mordiscar distraída o lábio, caçando minha veia difícil,

Os joelhos de Fernanda que cercavam o violoncelo
Enquanto absorta tocava com a arte de ser mulher,

As ancas frementes e ondulantes de Irene,
A professora distraída a escrever na lousa sua aula de inglês,

As sedutoras mãos de Helena, lindas e ondulantes,
Sutil expressão gestual que dizia mais do que suas palavras ,

A avidez delirante da língua deliciosa de Sumie
A me beijar loucamente com “boca de peixe”,

O tornozelo com correntinha de ouro, fetiche de Ida dos Anjos,
a sagitariana de meus delírios passionais,

A arrebatadora bunda roliça que Selma, de bruços,
Empinava a gemer e a chorar possuída de prazer,

As sobrancelhas grossas da cabocla, vinda de Tupã
Que precisava de ajuda para achar o irmão em São Paulo,

Os olhos verdes e fundos de Ligia
A me fitar apaixonada e carinhosa,

O corpo sensual de Silvana que me amava inteiro,
Intuição e justiça do cavalo e da cobra, a paixão mais amorosa,

As coxas entreabertas de Cássia, sôfrega,
O rosto em brasa, pedinte,

O colo quente de Vilma depois de fazer amor, ofegante,
Agarrada comigo, entregue pelo prazer,

As três marcas do rosto jovem e decidido de Débora,
A menina do olhar lunar firme como um quebra-gelo,

O iridescente sorriso de Gláucia a vender coca-cola e cigarros
Na loja de conveniências um instante antes de eu partir,

A voz encantada da faxineira de Fernando ao telefone
Que mal sabe o quanto é sensual falando comigo,

Os deliciosos pés de minha fisioterapeuta, usando sandálias
Que ao mexê-los bolem com minha imaginação,

O rosto iluminado de Carolina, minha amada filha,
Metamorfose de criança em mulher, incansável ao se buscar,

A face oculta de mulher, o lindo e encantador vampiro
Com jeito de menina a devorar náufragos no mar da Internet...

Minha procura é sina e fiz dela o motor de meus dias.
Onde está meu amor? Onde se espraia? O que guardo comigo?
Todos os encontros...
Onde meu coração foi arrebatado? Onde?
Em cada mulher que vi, vivi, percebi, amei,
Instantes eternos...
Em todas,
O fascínio pela alma feminina!

Não descanse, coração,
Por favor, não
Que, para isso há o encontro com a derradeira mulher!

12 de setembro de 2008

Explode coração

Noite de verão na primavera...
tudo são chamas a minha volta!
Meu corpo grita
Todos os cacos pelo chão...
Chora coração zagreu,
Chora!

Metrópole

São Paulo.
Hospício a céu aberto,
Loucura ministrada cotidianamente...
Dosagem: 4 horas de trânsito diário,
De Leste a extremo Sul.
Entre um e outro,
O infinito de semáforos indiferentes à nossa pressa
E de luzes vermelhas à minha frente.
Pés no freio.
Um pássaro cortou o céu displicentemente
(Primeiro sinal de liberdade desta tarde acinzentada)
Suspiros e um olhar de relance para os lados,
Vidros escurecidos,
Visão escurecida.
Olhos fixos no caminho ainda não vencido
E no radar indiscreto pronto a punir minha urgência de viver.
Outro suspiro quase conformado.
O pássaro já deve estar em seu ninho e eu,
120 metros a frente,
Uma vida pela frente,
O infinito vermelho à minha frente...

(Uma flor rompeu o asfalto,destemida e ingênua
Sem saber que encontraria além de nuvens de fumaça
A cruel indiferença humana)

A mesma mulher passa por mim todos os dias:
_Olha a água, suco, refrigerante!
_ Moça, tem porção de paciência?
(risos)
_ Vixi minha filha, essa acabou faz tempo!
Quem sabe amanhã...

Sábia mulher.
Amanhã...quem sabe amanhã...

Por hoje me bastam os membros doloridos
Pelas muitas sirenes exigindo passagem,
Pelo mar de motoboys exigindo passagem
Pela infinidade de pedestres exigindo passagem...

Amanhã...quem sabe amanhã...

O meu rapaz...

Toque-me fundo em meus desejos,
Sou minha, sou sua...

Ai loucura, você a lamber meus seios
E a percorrer meu corpo nu...

Eu, a querer e a devorar, eu sou estrela,
Você, gentil propósito, o terno amante.

Mimo dos encantos que me prendem,
Sinta-me! Você é meu! Você é meu!

Um desejo inconfesso, segredo sob o véu,
Encontro que seduz, sou lua vermelha!

Agarre-me assim gostoso pelas ancas
E ponha-me de quatro a tremer e a rebolar...

Eu entrego os pontos, venha me tomar refém,
Ai, amor, venha dominar sua menina!

10 de setembro de 2008

Noturno 07 - Notívagos

Fico na janela a fitar a noite à toa...
A garoa desenha nas ruas
Um translúcido mundo de contornos.
Soturno, ilícito e de costas para ti,
Busco adivinhar no vidro os olhos réus.
Estranho e doce corpo o teu.
Amor de aluguel, olhos de vitrine,
Disfarce noturno de fingida caça.
Dói-me o coração tua carícia,
Alicia-me caindo como um véu.
Boca lânguida de amante de bordel,
Por mais que me alucine
Não me enlaça
E sinto só tua morna perícia
Ao fingir desejos que são meus.
A hora passa e a noite escura se desfaz.
Você dorme entre lençóis impessoais...
Arrefece a chuva, amanheceu.
E, na rua, a sombra etérea
A ir-se ao léu entre os demais
Ainda sou eu, ainda sou eu...

Noturno 13 - A lua & a alma

Todo fragmento de lua
Busco ver em encruzilhadas,
Pedras ao léu atiradas nas esquinas,
Folhas mortas de relva,
Madrugadas e olhares.
Todo encantamento da lua
Pego nas poças encalhadas
Vida de armada entrega e sina,
Notívago desta urbana selva,
Mar de transeuntes e penares.
Em todo movimento da lua
Poesias cruas encontro atiradas,
Paixões caladas, bocas e apelos,
A cartografia para Passárgada,
As pontas dos meus novelos
E o desvario de minha alma nua.

9 de setembro de 2008

Mensagens

Um peixe flecha teu pé, carícia, aviso do mar,
Aviso aos navegantes, velas ao vento o sonho não se esconde,
Onde está você que não responde ao chamado do horizonte.
Desta cidade, deste cais, uivos quase silentes, boatos e apitos,
Partem navios e poemas, correm nos fios telefonemas,
Oceano virtual: mensagens, estreitos, sargaços e passagens,
“Ôi, sou eu”,
Navegar pelas sensações em mim, eu preciso.
No mar, vento motor, qualquer lugar será meu.

As ilhas

Beleza da ilha nevoenta e chuvosa
de nascentes, praias, morros e barcos
e navios e caminhos,e o sol, ah o sol,
os pensamentos nas esquinas de São Paulo,
velha puta que do planalto manda esgotos,
saudações repugnantes aos moradores da orla do mar
bosta petróleo, ilha porção de terra mater
dolorosamente cercada de água por todos os lados
que a chuva une e pune,
raiva de paulistano ano que vem será melhor de nascentes
e borrachudos e pensamentos de névoa branca, fumaça,
São Paulo da garoa morta atrás dos jardins destruídos
das praças que existem já não existem beleza de falsa ilha
do planalto cercada de lixo por todos os lados
e que a chuva de balas une e imunes paulistanos
de “caramarrada”, “cu na mão lá vem o guarda”,
vão sair de viagem para o litoral de sul a norte
a espalhar sonhos, desejo sina e morte pelo mar,
sistema Imigrantes Anchieta dorme filhinho
nas curvas da estrada de Santos, ferida fera
azes lotam ônibus farofa e frango, futebol e insolação
ou norte balsa, balsas de travessias soltas,
solto a voz nas estradas alguém que vi de passagem,
cento e setenta quilômetros e beleza de ilha névoa e chove,
chove penso e chove, chove penso e acordei chorando
e chove, chove e chove, chove e chove, chove...

7 de setembro de 2008

A Deusa e a Filha

para Vanessa
A Deusa

Ishtar, Estrela sagrada,
Deusa, que vespertina desces
Engolida nas profundezas da terra,
Lembra-te, deusa do touro, Vênus planetária,
Que um dia, ao amanhecer retornarás ao céu.
Morres despida de corpos a ir ter com a Deusa Escura
No ventre das profundezas da Terra Mãe.
Virás ao céu, porém, ascendente,
Revelando-te sobre o horizonte,
No limiar do infinito.

A Filha

Filha encarnada da divindade, mulher poeta de Touro,
Enquanto perambulares pelo mundo,
Faz cumprir tua sina sagrada de ser:
Escreve versos e deita-os fora em velhas garrafas
Atiradas aos mares a encobrir os labirintos dos homens.
Alguns com certeza os recolherão
E se verão inscritos nos ecos de tuas palavras.
Cumprir-se-á então a deusa, o mar, a alma e o poema.

4 de setembro de 2008

SEM TÍTULO


Estranho ser de fel a mergulhar dos próprios céus,
Grave escória, campina de estilhaços,
Irrisória trama que me enlaça,
Clama por mim no caos de que regresso.
Estremece os laços de meus presságios,
O eco do ardor contido em teu cerne.
Vem, meu adorno, grita então meu nome.
Resvala tua anca em minha anca a me seduzir com teu sexo.
Triste e circunflexa, parida dor de minhas sombras,
Vem, saudosa, tocar-me com tuas mãos ávidas de esperma,
Assoma-te com tuas garras de rapina
Até que estejas em mim, inútil pergunta para respostas ermas.

Sonho meu a emergir dos próprios véus,
Breve memória, cortina de fumaça,
Aleatória bruma que me abraça,
Chama por mim nos vaus que atravesso.
Repete às avessas o fim das palavras,
O eco do amor perdido sem retorno.
Vem, meu contorno, sussurra em vão meu nome.
Roça tua boca em minha boca a dizer coisas sem nexo.
Doce reflexo, curadora de meus escombros,
Vem saudade, toca-me com tuas mãos úmidas de espuma
Assombra-me com teu chamado na neblina
Até que sejas, em mim, inútil resposta para pergunta alguma.

Narciso

Vem beijo água,
Cortina.
O passado mente.
Toca lânguida
A boca do tempo
A minha boca.
Língua estranhamente doce,
Cálido abraço nu
Diante do que não vejo,
Vem corpo meu, destino,
Copula comigo,
Meu espelho.
A noite se esvai
No relevo das sombras.
O presente é uma soleira de porta.
Vem lembrança, desvario.
A passagem consente
Penetrar na memória.

1 de setembro de 2008

Escultura

Com o cinzel de madeira e grafite
Vou entalhando vidas no papel
Traços finos e grotescos emergem silenciosamente...

Esculpindo suavidades
Murmúrio de asas etéreas
Vôos brandos por sobre rochedos
E brisas descendo o penhasco.

Golpes acentuados e
Rebentam olhos absortos,
Fadigas intermináveis
E um tempo que não se afasta.

Fragor colérico (e suor vertendo em fio)
Irrompe assombrosa a Verdade
Face oculta, omitida,
Bruta e descomunal.

Ao fim do trabalho,
Corpo inerte e cinzel deitado sobre o tempo
Observo a obra magnífica:
Matéria prima, alva,
Novamente límpida,
Intocada e virgem.

Escrever é a eterna arte de recomeçar...